A Sul

Dançando em Lisboa.

A decorrer até 13 de Outubro, a 10ª edição do festival internacional de dança contemporânea “a sul”, passou, no final do mês de Setembro, pelo Teatro Taborda, em Lisboa. Tendo como país convidado o Japão, o festival instala-se na sua região de origem, o Algarve, e nas cidades de Faro, Loulé, Lagos, Lagoa e Vila Real de St.º António.

Criado com o objectivo de difundir a dança contemporânea portuguesa, e de outros países cultural e geograficamente “vizinhos” do nosso, a partir da sua 7ª edição o “a sul” passou a divulgar projectos oriundos de países cuja produção era pouco conhecida em Portugal. Depois dos países do leste da Europa, da Argentina e, numa mesma ediçã,o do Chipre, Grécia e Turquia a escolha recaiu, em 2006, na dança contemporânea nipónica.

No Teatro Taborda assistimos a três espectáculos, bem distintos, que podem ser um indício da diversidade de propostas que o Japão tem para oferecer. No espectáculo Pollen Revolution de Akira Kasai a dança contemporânea andou de mãos dadas com a tradição; Mizunoie/Water House, pela Monochrome Circus uniu brilhantemente uma mesa quadrada, dois bailarinos e o som constante da chuva e, por fim, a companhia j.a.m. dance theatre apresentou em Carlo x Carlo, um duelo de emoções num cativo e impressionante cenário.

Pollen Revolution, Akira Kasai

Num palco completamente branco brilha a estrela maior do butoh japonês, Akira Kasai. Aquele que é um dos mais notáveis bailarinos nipónicos coreografou e executa o solo Pollen Revolution desde a sua estreia absoluta no ano 2001, em Tóquio. Akira Kasai já passou a barreira dos 60 anos e isso nota-se em palco: é arrojado, único, dominador, exagerado!

Pollen Revolution é uma viagem por diversos tempos, espaços e estados de alma. Visita várias culturas, a oriental e a ocidental, visita as salas de espectáculo e as ruas, visita a dança tradicional e a dança contemporânea.

E tudo começa com Kasai vestido como uma mulher numa dramatização Kabuki. Traja um bonito kimono azul claro, com flores rosas, de onde cai um lenço vermelho inanimado no chão. A sua cara, completamente branca, contrasta com o negro da sua peruca e o vermelho dos seus lábios. Os seus movimentos lentos e coreografados parecem seguir os símbolos da dança tradicional japonesa, mas o que Kasai faz é pura improvisação! Em êxtase completo domina todo o palco, a música atinge um grau penoso de intensidade, Kasai executa movimentos cada vez mais rápidos, perde elementos da sua máscara e prepara-se para encarnar uma nova personagem…

Reaparece vestido de preto sob um único foco de luz, a cada movimento a luz multiplica-se até que todo o palco se ilumina. Agora Kasai é uma bailarino de rua, um viajante errante que percorre, com a mesma euforia e ligeireza de antes, o palco. Os ritmos que vão ao seu encontro passam também pela música electrónica, mas ainda assim Akira Kasai não se consegue separar do Butoh.

O ambiente mundano como termina o seu espectáculo, já vestido de branco como se renascesse um novo homem, aproxima-o mais do público. E depois de tantos cruzamentos de ritmos que marcaram a dança de Kasai, como o estridente som de um navio que zarpa ou o hip-hop de rua, vence o silêncio dos seus murmúrios sob um apoteótico final coroado por uma chuva de papelinhos prateados. Mestre das surpresas, Akira regressa para lançar ao ar um grande e colorido ramo de flores. Estas espalham-se pelo palco e servem-lhe de elemento cénico enquanto dança ao som de «Uma casa portuguesa».

E neste momento percebemos porque Akira Kasai interpreta qualquer ritmo, até mesmo o do silêncio… porque dança com o coração!

Mizunoie/Water House, Monochrome Circus

Um homem e uma mulher encontram-se presos no topo de uma pequena mesa quadrada de madeira. À sua volta apenas o vazio magnético que os impede de tocar o chão. O barulho da chuva, que cai incessantemente, preenche os limites que fixam a fronteira do espaço dançável e serve de banda sonora ao bailado.

Mizunoie/Water House inspira-se no Tsunami e aborda os limites e a liberdade da dança. E é impressionante o que consegue transmitir num espaço tão diminuto, onde a ausência de paredes fixas provoca uma espécie de claustrofobia psicológica. Por um lado há uma profunda proximidade dos corpos, mas também uma enorme distância mecânica nos seus movimentos. Uma coordenação e sintonia extremas que nos fazem acreditar que são um único corpo em movimento, enfeitiçado pelo copioso barulho da chuva.

Os movimentos calculados e físicos, e sem dúvida harmoniosos, que obrigam os seus corpos a desenvolver contam-nos histórias… Histórias de procura e de fuga, de luta pelo espaço e pelo tempo, de encontros e de desencontros que conduzem os bailarinos para os braços um do outro. E quando o barulho da chuva se torna ensurdecedor e penoso para os nossos ouvidos, a mulher deixa-se morrer nos braços do homem que a recebe ironicamente como de uma “pietá” se tratasse!

Carlo x Carlo,  j.a.m. dance theatre

Quando a música termina e a cortina vermelha de veludo se abre de par em par a surpresa é imediata. O palco foi transformado numa gaiola gigante cujas quatro paredes, formadas por uma complexa teia de corda, unem o chão ao tecto. Dentro desta teia vagueiam duas criaturas que passeiam, não só com os seus pés descalços como todo o seu corpo, por um chão coberto por fitas em papel. A música de fundo são os seus gritos e guinchos, a sua dança um excêntrico bailado de encontros e repulsas entre bailarinos e com o próprio público.

E nestes minutos, que são os iniciais, pensamos se não seremos nós que estamos presos dentro de uma gaiola… E quando estas criaturas nos olham intensamente através da teia de corda pensamos se não seremos nós os actores e eles o público curioso que se questiona acerca da nossa presença ali.

Constituída em 2002, a j.a.m. dance theater trabalha as relações entre o espaço e o corpo. Desta forma, procura envolver e inspirar não só os seus executantes como a imaginação de quem assiste às suas performances. E consegue-o! A coreografia disputada entre os dois bailarinos, que encarnam personagens humanas, mas selvagens, parece ser aleatória e complexa, bem semelhante à experiência e à condição humanas. O bailado de sensações que Carlo X Carlo nos provoca é bem representativo da excelente dança contemporânea que a j.a.m. dance theatre executa. A partir de uma mesma situação, fazem-nos imaginar uma história que é só nossa. Com ritmos que vão do ballet mais clássico, passando pela música de Tom Waits e terminando com a voz de Amália Rodrigues, que nos comovem e nos convidam a fazer parte do seu trabalho. Não há dúvida, esta companhia japonesa é tão surpreendente, quanto excitante e amável para o seu público!



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