“Regresso ao Suez” | Stevie Davies

“Regresso ao Suez” | Stevie Davies

As várias perspetivas de um conflito emocional

Naquela que é a estreia literária da galesa Stevie Davies por terras nacionais, “Regresso ao Suez” (Civilização Editora, 2013) revela-se um extraordinário romance que faz o somatório entre a experiência pessoal e um universo político muito próprio que tem, como base, um rol de personagens realistas e credíveis, assim como uma estória a todos os níveis coerente e que joga habilmente com uma intrincada linha cronológica de ritmo próprio.

Entretanto nomeada para importantes prémios internacionais como o Booker e o Orange, Davies, que acumula à paixão da escrita as atividades de historiadora, crítica literária e biógrafa, goza de um estatuto “clandestino” no universo literário, ainda que tenha já editado mais de uma dezena de livros e sejam sobejamente conhecidas as suas participações em ações de protesto contra o governo britânico.

Foi numa dessas manifestações, aquando das ações de rua contra a participação do Reino Unido no conflito do Iraque em 2003, que nasceu a ideia deste livro. Ainda que em parte desfasada na conjuntura e nos propósitos com a mais recente guerra no Iraque, Davies relembrou a crise no Suez na década de 1950, assim como a intervenção dos representantes governamentais britânicos aquando desse período crítico, começando assim a formar-se a ideia de escrever “Regresso ao Suez”.

Através de um romance sinónimo de profundo drama humano e político, somos levados ao período pós-guerra quando a Grã-Bretanha tentava assumir-se como potência mundial depois de acabar a Segunda Guerra financeiramente delapidada. A trama desta obra transporta o leitor para uma época imediatamente anterior à apelidada Crise do Suez, que acabou por “inspirar” o modelo das futuras invasões do Iraque ao Afeganistão.

Nesta emocionante e trágica estória, Stevie Davies apresenta-nos vários e atraentes personagens. Um deles é Joe Roberts, oficial do império britânico, um ser movido pelas agruras da vida motivadas pela veia proletária mas que tem um íntimo encantador, onde o humor está sempre presente – ainda que tal seja construído através de doses significativas de racismo e misoginia que, por vezes, roçam o extremismo.

A seu lado está Alisa, uma mulher inteligente que tem, na curiosidade e ansiedade de explorar a realidade do distante Egito, uma das suas maiores motivações de vida, aguçada pelo destacamento do seu marido Joe para o quartel britânico local. Pelo meio dessa maravilhosa viagem conhece Mona – tornada refugiada palestiniana depois da formação de Israel -, também casada com um militar, Ben, um devoto à causa judaica que a ensina a encarar o mundo de uma outra forma, desafiando Alisa rever os seus horizontes enquanto pessoa. Joe não concorda com tal visão liberal e, envolto de uma intolerância face às raízes de Mona, repudia a amizade entre a esposa e a nova amiga.

Apesar das diferentes visões da vida e unidos por um amor incondicional, Joe e Alisa observam a estrutura do seu edifício emocional ameaçar a derrocada depois da morte do melhor amigo de Joe, vítima do terrorismo egípcio. Anos mais tarde, Nia, filha do casal, mergulha no passado dos pais e, na companhia da idosa Mona, explora memórias e procura respostas. Será Joe um verdadeiro herói de guerra? Por vezes a vida mostra a verdade da forma mais dolorosa mas Nia está disposta a tudo…

Também ela filha de um antigo oficial da mítica RAF (Royal Air Force), Stevie Davies conhece bem a experiência de viver com os ecos das glórias remanescentes de um império, e tal ajudou a escritora a dedicar corpo e alma a este maravilhoso livro que revela, como poucos, a complexidade de uma paixão entre duas pessoas que conseguiram ao longo da vida colocar de lado as suas diferenças de forma a preservar a própria “conveniência” dessa união. Outro dos trunfos de “Regresso Suez” é a contextualização pormenorizada das épocas vividas no cerne deste romance, que tem como fundação para a sua grandeza a união de pequenos mas decisivos acontecimentos.



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