“A Herança Perdida” | James Wood
Literatura, crença e um desafio à massa cinzenta
Há uma sentença, nascida da (quase) sempre sensata sabedoria popular, que fica entre a crítica e o elogio: “Com esse feitio deves ter muitos amigos”. Pois bem, James Wood deve ser rapaz para estar farto de ouvir isso.
“A Herança Perdida” reúne ensaios sobre literatura e crença que viram a luz da edição em publicações tão respeitosas como The New York Times, The New Yorker, The New York Review of Books ou London Review of Books.
Uma primeira olhadela ao índice e a entradas como “O Todo e o Se: Deus e Metáfora em Melville”, “Meio contra Flaubert” ou “Thomas Mann: O Mestre do não Muito” poderá surgir que estamos diante de textos crípticos destinados a académicos e teóricos. Porém, James Wood transforma a crítica literária em filosofia pop, com uma clareza que actua como uma massagem à massa cinzenta (a que terá também ajudado a boa tradução).
Em “A Herança Perdida” destroem-se mitos e erguem-se estátuas, dependendo do olhar crítico de James Wood. Em cada um dos seus ensaios fala-se de como a literatura funciona como uma espécie de religião ou, em alternativa, de como a própria religião foi transformada num género literário: Sir Thomas Moore, tido como um cristão exemplar em tudo o que é manual e enciclopédia, é apontado como traidor da sua própria humanidade; a propósito de Harold Bloom navegamos entre a metáfora e o solilóquio Shakespeariano; Jane Austen, «dona de uma felicidade clandestina», surge como a inventora do estilo indirecto livre; Melville tem direito a um dos mais vibrantes ensaios, tendo com Moby Dick escrito «o romance que é o sonho de liberdade de qualquer escritor»; culpa-se Flaubert, um obsessivo pela frase, de «ter transformado a prosa numa questão de estilo – fazendo com que pela primeira vez na ficção o estilo fosse um problema»; em Gógol diagnostica-se uma síndrome Dr. Jekyll/Mr. Hyde, dividida entre o fanático e o literário; Tchékhov permitiu “o esquecimento na ficção”; Knut Hamsun levou ainda mais longe o “fluxo da consciência”, fundando «um romance de estados crepusculares, de alienação e de surrealismo abrupto, e de uma ficcionalidade feroz»; em Virginia Woolf, escritora insubordinada contra o espírito vitoriano, as palavras tornam-se cores; em Thomas Mann revela-se uma ideia de minúcia, «chave quer para a sua grandiosidade, quer para a sua sensibilidade enquanto romancista»; D.H. Lawrence, romancista místico, terá sido «poeta e pregador em simultâneo»; em T.S. Eliot, o cristianismo abandona a religiosidade e o emocional para abraçar um lado intelectual e dogmático; George Steiner é acusado de ser defensor de um regime opressivo e totalitarista; Iris Murdoch é criticada por ter criado «personagens ficcionais tão presas quanto reclusos mimados»; para Thomas Pynchon não há qualquer meio-termo, formando «leitores que pensam que ele é um grande ocultista e leitores que pensam que ele é um autêntico burlão»; “Submundo”, romance de Don DeLillo, é apontado como um fracasso gigantesco, prova da «incompatibilidade da visão da paranóia política com a grande literatura»; John Updike é tido um escritor pouco trágico e complacente; “O Teatro da Sabbath”, de Philip Roth, é elogiado por transmitir a «sensação de que a verdade não é uma confissão… mas uma revelação»; Julian Barnes é arrasado de alto a baixo: «gosta de se enredar a si próprio. O seu método habitual consiste em pegar em algo simples e transformá-lo num enigma»; «Angustiada, arrojada, extrema, silenciosa”, são os adjectivos encontrados para a escrita de W.G. Sebald, «um dos mais misteriosamente sublimes escritores europeus contemporâneos»; remata-se com mais uma crucificação, neste caso de Ernest Renan e Matthew Arnold: «são enfermeiros-chefes do sono do cristianismo do século XIX, e nas suas obras encontram-se muitos remédios falsos».
James Wood é polémico, severo e não vira a caneta a uma boa confrontação, mas fá-lo sempre de forma estimulante e, na maioria dos casos, com um grande sentido de justiça. Para quem gosta de olhar a literatura nas entrelinhas e dar trabalho à massa cinzenta, “A Herança Perdida” é um dos grandes lançamentos do ano.
Uma edição Quetzal
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