“Uma Obra Enternecedora de Assombroso Génio” | Dave Eggers
Vamos fingir que é ficção
Tinha tudo para correr mal ou, pelo menos, para se ter transformado num daqueles livros dados a puxar pela lágrima dos leitores de uma forma quase manipuladora. Senão, vejamos a matéria-prima que deu origem a “Uma Obra Enternecedora de Assombroso Génio”, livro saído da pena de Dave Eggers: as memórias de uma família normal que, num ápice, com a morte violenta dos pais no espaço de pouco mais de um mês, se desfaz (ou, pelo menos, se torna tudo menos normal); e as de um jovem em idade universitária que tem de criar um irmão de oito anos.
O início é desde logo prometedor, com a apresentação de algumas “Regras e sugestões para a apreciação deste livro”. Aí, ficamos a saber que o prefácio é dispensável – assim como a secção dos agradecimentos -, podendo o leitor “saltar para a página do índice, caso esteja com pouco tempo”. A bem dizer, o leitor poderá igualmente saltar “boa parte do meio, nomeadamente as páginas 264 a 367”, que tratam das vidas de pessoas com pouco mais de vinte anos, e “é muito difícil tornar-se tais vidas interessantes…”.
Já no prefácio, Eggers confessa ter escrito o livro a partir da sua própria vida, assumindo que se trata de qualquer coisa como uma realidade ficcionada. Quem não gostar da ideia terá sempre alternativa: “…se vos incomodar a ideia de isto ser real, estais convidados a fazer aquilo que o autor deveria ter feito, e que os autores e os leitores têm andado a fazer desde o princípio dos tempos: FINGIR QUE É FICÇÃO”.
Apesar de ser o irmão mais novo de um trio, é Dave (o escritor/narrador) que irá tomar conta do pequeno Toph (então com 8 anos) depois da morte dos pais. Em idade universitária, Dave terá de ser ao mesmo tempo pai, irmão e um rapaz com as hormonas aos saltos, o que constitui uma missão tremendamente arriscada. O poder traz uma nova visão, novas regras, pois afinal trata-se do pai mais novo e sexualmente mais activo de toda a escola – segundo ele, um super-pai, que até poderia tomar conta dos filhos dos outros. A dúvida sobre o passado irá contudo permanecer: será melhor preservar o que foi herdado ou fazer tudo desaparecer? Há também um grande sentimento de culpa em relação aos pais, cujos corpos nunca ninguém reclamou após terem sido dados para que os orgãos pudessem ser estudados ou oferecidos.
O sentido de responsabilidade é considerável, ainda que Toph ande sempre com um boné mal-cheiroso, a casa pareça um cenário de pós-bombardeamento e as refeições torçam o nariz a tudo o que pareça saudável – apesar de haver alguma fruta. Sempre que deixa Toph com um(a) babysitter o sentimento de culpa é grande, imaginando um cenário de sangue e cabeças cortadas no seu regresso. Aliás, as noites de copos são passadas a pensar que deveria haver algo de mais grandioso à espreita do que apenas copos e conversa da treta, algo que compensasse ter arriscado deixar o puto com um semi-desconhecido para estar com pessoas que não páram de lhe perguntar pelo irmão mais novo.
Assistimos a uma tentativa frustrada de Dave entrar num programa da MTV, que se dedica a contar a tristeza das vidas, e também à fundação de uma revista pretensiosa que pretende salvar o mundo, lançando números especiais como “o que vai ser o futuro”, artigos a desmascarar as raves e os jovens empresários – ou sobre os Grateful Dead – e muita nudez.
Comovente, cómico e muitas vezes irado, “Uma Obra Enternecedora de Assombroso Génio” é um livro que, pela sua honestidade, falsa modéstia e suprema vaidade acaba por transgredir vários dos limites formais da Literatura, num retrato de uma juventude em que a beleza foi cedo de mais confrontada com o lado feio e injusto da vida. Um livro que é um grito de ajuda, uma crítica sentida aos amigos – e falsos amigos – e, se quiserem, um Zé Povinho à morte. Recomendadíssimo.
There are no comments
Add yoursTem de iniciar a sessão para publicar um comentário.
Artigos Relacionados