“00.30 – A Hora Negra”
O complexo do herói americano
A História Moderna encontrou, a 11 de Setembro de 2011, uma das mais trágicas viragens. A queda das torres do World Trade Center derrubou consigo valores sociais dados como adquiridos e teve réplicas imediatas num imaginário consolidado ao longo da civilização, esculpindo neste os sentimentos mais primitivos da raça humana. Iniciava-se assim a Guerra ao Terror, decretada pela administração Bush, que viria a multiplicar por 100 as baixas contabilizadas nesse dia fatídico e personificando toda a putrefacção de uma espécie numa face: a de Osama bin Laden.
Onze anos depois, noticia-se que a Operação Neptune Spear foi bem sucedida e que bin Laden entra para a contagem das baixas. São estes onze anos os retratados por Kathryn Bigelow no seu novo filme, que surge disfarçado de falso trabalho jornalístico acerca desta cadeia de acontecimentos.
Mas Bigelow cai cedo na mesma armadilha: a centralização de uma questão de inúmeras camadas numa única personagem central. Uma face que tenta comportar em si as várias dimensões de uma operação montada a uma escala quase planetária. E fá-lo com um sentido de tempo em contra-relógio: se o filme é demasiado episódico para deixar florescer Maya enquanto chave da cadeia causal que leva à operação de aniquilação do Mal, também se poderá questionar a pertinência de um testemunho deste género, tão poucos meses volvidos.
Ainda nesta perspectiva, tenta disfarçar-se um falso jornalismo através de indicações geográficas e temporais constantes, que vão formando um mosaico por vezes impenetrável. Isto não tem que ver com as polémicas levantadas sobre a tortura explícita filmada por Bigelow, mas antes no endeusamento de uma figura que vai canalizando sobre si todos os vestígios de uma moral questionável e (muito pior) os instintos primários mais ferozes de uma civilização que teima em afastá-los e usar-se deles ao mesmo tempo.
Mas, curiosamente, tudo isto é contado através de artefactos que, pontualmente, acabam por resultar, muito por mérito da extraordinária partitura de Alexandre Desplat e pela montagem desarmante. É curioso que a equipa Bigelow-Boal falhe tão redondamente a levantar questões mais complexas mas compense isto com sequências muito poderosas: atente-se na sequência da Operação Neptune Spear para se ter um vislumbre desse domínio técnico.
Bigelow chegou a ser comparada a Leni Riefenstahl enquanto propagandista do seu respectivo regime. Será longe de mais erguer uma crítica como essa, até porque não é por aí que se narram os acontecimentos. O erro de Bigelow residirá noutra direcção: a de tentar construir um novo herói americano num terreno tão pantanoso e impuro.
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