5-30 | “5-30” (2014)
Às cinco e meia da manhã, todas as gatas são pardas
Quando o videoclip de «Chegou a hora» (numa sugestiva estética de fusão de elementos manga com o cinema japonês dos anos 60, Oshima à cabeça, com muito vermelho, de sangue e sacrifício, à mistura), o primeiro single de 5-30, foi colocado a rodar na internet, aqueles que acompanham Carlão/Pacman desde o início, como é o nosso caso (e do próprio Regula, que, em «Bar Aberto», do seu álbum “Gancho”, diz “Eu oiço o Pacman desde os tempos dele do Casal”), sentiram como aquele esgazeado “Eu sou capaz!” tinha um duplo significado. Um primeiro, mais imediato, de cunho amoroso ou relacional, no sentido da superação de uma relação traumática que, terminada abruptamente, deixa uma das partes “sem pé”. Mas um segundo sentido correspondente ao regresso de Carlão à dianteira da música portuguesa (ideia que ressalta do “fumo branco” que preenche o citado videoclip) e, mais importante, à música cantada em Português, circunstância especialmente assinalável quando o músico tem tentado trilhar em Portugal um caminho – o da spoken word – muito pouco explorado (que, tendo começado nas bocas dos The Last Poets, ganhou eco mundial com esse grande Senhor da música chamado Gil Scott-Heron). Palavra falada, aliás, que mantém alguma expressão neste álbum (sobretudo nas faixas que o abrem e encerram, bem como no epílogo de «Abuso»).
Somos, de algum modo, suspeitos para louvar este regresso, já que o nosso primeiríssimo e apaixonado contacto com os Da Weasel (DW) ocorreu, há já muitos anos, numa colónia de férias para miúdos perto de Lisboa (nós vínhamos do Porto). Corria o ano de 1999 e “Iniciação A Uma Vida Banal – Manual” – que continua a ser, para nós, o melhor álbum dos DW – rebentou-nos nos ouvidos de uma forma a tal ponto arrebatadora que desde aí nunca mais largamos este vício, quase primitivo, ancestral, de escutar palavras proferidas em cima de uma base de percussão, ou seja, rimas e batidas. Isto para dizer que o regresso de Carlão não é um qualquer; é, efectivamente, o retomar, triunfante, de um percurso, já longo, que o consagrou como um dos melhores letristas da sua geração. Recuperando esse portento que é «Chegou a hora», nele ouvimos o Carlão airoso e enérgico de quando tudo começou (e que a maioria dos auto-proclamados “fans” de DW não conhece, crentes de que só existe mundo pós-“Re-Definições”, 2004, o álbum mais mediático, mas excelente, da Doninha), ou seja, o Pacman de «God Bless Johny» (“More Than 30 Motherf*****s”, 1994) e, sobretudo, de “Dou-lhe Com A Alma” (1995) e “3º Capítulo” (1997), este último o tal “álbum da palma” (conferir respectiva artwork) para o qual Sam the Kid diz ter gravado por já então lhe dar “com a alma”, passagem genial (apetece dizer: “intra-diegética”) que se ouve em «Placas», uma das melhores faixas de “5-30”.
O nome escolhido, 5-30, deveu-se, segundo os próprios, ao número da porta do estúdio onde o álbum foi cozinhado a seis mãos, leia-se Pacman, Regula e Fred (o man in charge pelos drums dos Orelha Negra). Preferimos, no entanto, continuar a pensar, até pelo grafismo da artwork do álbum (que lembra um relógio despertador), que 5-30 corresponde a um momento temporal específico, isto é, às cinco e meia da manhã. E se pensamos assim é porque este é um álbum – como será repetido exaustivamente pela crítica, mas não há volta a dar – nocturno e noctívago: na secção de percussão, nos ambientes melódicos espectrais e reflexivos e, não menos importante, nas letras. É um álbum que nos transporta, quase indeclinavelmente, para esse período meio clandestino, oculto, do dia, no qual a maioria dos mortais já recolheu e os restantes aspiram à imortalidade através de excessos (drogas e derivados), pulsões (sexo, violência) e desmoronares épicos (“Já passam das 5 da manhã e a partir dessa hora eu sei que tu já não namoras / E aquilo que um dia foi amor num instante passa a memórias”, atira Regula em «Pode ser»). Fá-lo numa toada profundamente opiácea, tântrica, como se caminhasse lentamente, aos caídos, por um túnel muito escuro acompanhado de uma luz fraca e intermitente. Mas se essa ligação nocturna se estabelece neste ponto, não deixa de o fazer igualmente com uma certa ideia de insónia, de debilidade física, que cobre 5-30 de uma ponta à outra, como se a visão das coisas (e o corpo) estivesse cansada e distorcida (“Mas tu ainda queres mais um shot / Junta-te ao resto, já ‘tás c’a visão tão torta…”, confirma Regula em «Abuso»).
Falarmos em noite é falarmos no encontro dos corpos, com primazia, claro, para o da Mulher, que é musa, heroína (nos dois sentidos), mártir e rainha do álbum.
No lançamento do recente “G I R L” (2014), Pharrell Williams justificou, repetidamente, a importância do álbum para o rebate da “misoginia” que muitos lhes apontaram pelo vídeo («Blurred Lines») em que, acompanhado de Robin Thicke e T.I., cortejava as maminhas de umas quantas giraças (como se isso fosse algo de novo para esta malta, mas adiante). Os 5-30, num caminho diferente, foram bem mais honestos: como já disseram em entrevistas, este é um álbum de “homens” e não de meninos, pelo que aqui as coisas são ditas como elas são, sem paninhos quentes ou moralismos de conveniência. Isso não faz de 5-30 um álbum misógino, mas sim um álbum que, “chamando os bois pelos nomes”, olha as coisas de frente e fala com verdade (aquela verdade que talvez só o hip-hop, na sua oralidade instantânea e esmagadora, alcança) sobre o que os olhos vêem: drogas, mulheres, homens, dinheiro, amor, sexo, vícios (como muito acertadamente já referiu Carlão em entrevista, em «Pitas Querem Guito», por exemplo, o homem fica tão mal na fotografia como a mulher). Crueza, com certeza, sobretudo quando se tem no microfone um rapper como Regula, dono de um estilo só dele no panorama do hip-hop português e apurado ao máximo no seu último álbum (“Gancho”, 2013), uma autêntica bomba (de flow, de wordplay, de técnica, com rimas multissilábicas em catadupa) que lhe granjeou um hype de que não nos lembramos de outros se poderem gabar há muitos anos. Esse estilo único salda-se na combinação de momentos poéticos com a mais pura das obscenidades – no hip-hop português, só Blasph consegue manter a mesma harmonia – ou, simplesmente, com versos simples mas de uma beleza inaudita pela carga de intimidade, de real, que os perpassa. Exemplo: “Amor é tudo o que eu trago no corpo / Estás grávida dele, eu pago o aborto / Mas se quiseres ter o puto, também pago o conforto / Eu juro, sempre que estejas em baixo, vou ajudar a compor-te” («Vício»). Em «Arame» (de dinheiro), Regula inicia assim: “Ok, eu comecei com estupefacientes / Ma nigga, isto são tudo factos cientes / Deixei todos da concorrência estupefactos e sentes / que agora os meus garfos tocam em pratos diferentes”. A alusão às drogas e a negócios ilícitos, com muito humor à mistura, é uma constante no rap de Regula, e, se isso incomodar alguém (“isto é real ou é só uma persona?”), o melhor remédio é mesmo ir ouvir o intro de «Kill Bills» (também de “Gancho”). Carlão, por sua vez, é autor de alguns dos mais belos momentos de 5-30, cantando versos delicados e a transbordar de subtileza, como são, e só mesmo para escolher alguns, os de «A Dúvida» (“A dúvida cai, como chuva grossa / O ânimo vai, mergulha numa poça (…)”), ou “Vício” (“Parece que plana no nosso plano / Mas emana um cheiro profano”), embora nem sempre a opção pelo uso do auto-tune (de que, no hip-hop, nunca ninguém se serviu tão bem como Kanye West, em “808s & Heartbreak”, 2008) saia por cima («Eu já estive aqui» é um caso em que não funciona de todo).
Se tudo isto não bastasse, a presença de Sam the Kid (três faixas) vem abrilhantar ainda mais o cardápio: se o rapper de Chelas se tem reservado, nos últimos tempos, ao trabalho de produção e instrumentalização (com os Orelha Negra), certo é que, de cada vez que revela um pouco do que anda a escrever, o prazer de quem o ouve é garantidamente enorme, sendo um dos poucos rappers na actualidade – e falando a um nível global – que consegue manter um equilíbrio entre o apuramento técnico (rimas multissilábicas, inversão voluntária da fonética das sílabas tónicas, diáforas, aliterações, etc.) e a capacidade de passar uma boa ideia. Em «Pitas Querem Guito», o músico dá aso ao seu superlativo talento de storyteller e revisita os temas da noite e da atracção fatal entre “exploradores” e “explorados” (ou “predadores” e “presas”), temas que já vêm de clássicos como «Sexta-feira» ou «Sofia” (segunda parte); «A Dúvida», por sua vez, é oportunidade para o músico se voltar para o monólogo amoroso, interrogando-se sobre a seriedade e o “próximo passo” de uma relação ainda precoce, faixa viciante com a qual uma geração inteira de homens nascida algures na década de 80 (como é o nosso caso) se identificará imediatamente (na senda de faixas como «Tão longe, tão perto», em colaboração com TT, ou «És onde quero estar», dos Mind da Gap). Finalmente, «Placas», com beat evocador das sonoridades mais pesadas dos Dealema («Escola dos 90», «Infiéis (Ninguém Teme)»), é palco para Sam the Kid desenrolar todo o seu arsenal de recursos técnicos e estilísticos, o que faz dele, a par de Virtus, um dos rappers mais exigentes no actual hip-hop português.
Desde já um dos melhores álbuns de hip-hop neste ainda curto ano, “5-30” extravasa, porém, muitíssimo este âmbito, sobretudo devido à classe que Fred imprime à composição, aos arranjos, aos pormenores delirantes que, com repetidas audições, vamos apanhando aqui e ali. São blocos rítmicos complexos, imprevisíveis e a todo o momento interpenetráveis (fabulosas as três grandes variações rítmicas que se ouvem em «Pitas Querem Guito») – dos breaks ao trap, do dubstep à electrónica, passando pelo r’n’b mais contemporâneo, mas, em qualquer caso, com o bass sempre em primeiríssimo plano e os solos da guitarra eléctrica logo a seguir – acompanhados de melodias que convidam não só à introspecção como, simultaneamente, ao abanar dos corpos (nos mais amplos sentidos possíveis…) – já estamos a ver (ou a ouvir) «Pitas Querem Guito» ou «Arame» a bombarem nos clubes por esse País fora. De 5-30 sobressai, também, a confirmação – se é que era necessária – de que a “novidade” ou o que é “fresh” (obsessão de muitos críticos) não tem necessariamente que significar um corte absoluto com o passado, i.e., com a produção sample-based, com o boom-bap, enfim, com o hip-hop mais clássico (Regula ajuda-nos nesta reverência ao passado, quando, em «Arame», evoca Ace, dos Mind da Gap, e a histórica «Todos Gordos»), antes florescendo, precisamente, no cruzamento dos tempos e das tendências. Resta confirmar tudo isto ao vivo, em concertos para os quais está já meio Portugal com água na boca.
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