“A Carne” de Rosa Montero
Crónica do desamor
«A vida é um pequeno espaço de luz entre duas nostalgias. A nostalgia do que ainda não vivemos e a do que já não poderemos viver». É com estas duas frases que a jornalista/escritora, ou escritora/jornalista, espanhola Rosa Montero começa o seu mais recente romance A Carne (Porto Editora, 2017), um livro que conta uma fatia da vida de Soledad, uma mulher madura que aos 60 anos luta contra um monstro chamado…solidão.
Desesperada, contrata um acompanhante para que seja o seu par numa noite de ópera. O objetivo é fazer ciúmes a Mario, ex-amante com o qual tinha combinado, em tempos, ver o referido espetáculo. À falta de melhor uso para os dois bilhetes há muito comprados, Soledad parte numa desajeitada tentativa de provocação. Mas, quis o destino que um violento e imprevisível incidente alterasse todos os planos.
Como não há consequência sem causa, nessa noite, Soledad envolve-se com Adam, o acompanhante, visto com o último homem da terra o fruto proibido, dando início a uma relação que se vai revelando inquietante, perigosa e irracional. E enquanto luta contra a herança do seu envelhecimento, Soledad tenta manter-se à tona, sobrevivendo aos fantasmas da idade, de uma família (dis)funcional e de uma última réstia de esperança racional que a levou a preparar uma exposição sobre escritores malditos.
Entre a comédia e o drama, Rosa Montero, remete-nos para um universo paralelo que mistura (autêntica e deliciosa) literatura, música/ópera, desespero, coragem, sexo, decadência, amor e morte, ingredientes que remetem, irremediavelmente, para A Louca da Casa, a eterna obra-prima da madrilena. Há ainda tempo e espaço para pedaços de uma lírica (auto)referência que coloca o leitor no centro de um duelo entre Rosas, loucas de e pelo fogo da paixão ou como testemunha privilegiada de uma espécie de diário expiatório (e espião) de quem luta pela sanidade, mesmo que isso signifique o adeus da autoestima, do amor à própria pessoa.
Rosa Montero é dona de uma escrita que desarma, que abraça, e que, por vezes, num ato de puro desvario, se situa à beira do grito, do delírio. A amargura confunde-se com a beleza das palavras, o desejo transfigura-se de uma constante última oportunidade, a imaginação dá lugar à desconfiança, a derrota veste-se de vitalidade pois em A Carne, um romance que se devora vorazmente, ninguém ganha ou perde, apenas se tem a sensação de continuar na luta. Mesmo que isso signifique ficar fechado num duche, espreitar por trás de cada esquina ou passar-se por aquilo, por uma pessoa, que sempre desejamos não ser.
No seu âmago, A Carne não é um livro de ou para mulheres ou homens. É um livro de amor, por vezes cru e dilacerante de tão improvável. Sobre um (obsessivo) amor que se oferece, ou que se pretende receber. Sobre um amor que, por vezes, é a mais excelsa representação da solidão, seja ela um sentimento ou um nome pessoal.
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