A Cidade dos Mortos/Waiting for Paradise
A casa mortuária.
Antes do genérico final de “A Cidade dos Mortos”, lê-se que um quarto da população do Cairo vive em cemitérios. Um quarto da população viva, entenda-se. Uma realidade que choca com a mentalidade ocidental, que prefere enxotar a ideia da morte como pode e sabe. Uma realidade que assume uma estranha normalidade ao ver-se o filme. Aliás, “A Cidade dos Mortos” é mais sobre uma comunidade que por acaso habita num cemitério do que sobre viver num cemitério. O que parte da escolha do realizador Sérgio Tréfaut (autor de um dos documentários nacionais de maior sucesso: “Lisboetas”, sobre os imigrantes da capital) de não filmar enterros.
É uma escolha consciente, e talvez necessária para encenar essa tal normalidade, mas que obviamente deturpa a realidade dos funerais constantes com que os habitantes do cemitério têm de conviver (e dos quais os únicos registos são um ou outro diálogo). Escrevo consciente, porque facilmente se percebe que o que interessa a Tréfaut são as personagens que filma, aquela “aldeia” fechada, em que, finalmente, é a normalidade que se estranha. Ou seja, sem o cemitério, “A Cidade dos Mortos” seria um documentário não muito diferente sobre uma comunidade fechada no meio do Cairo.
As mães sonham em casar as filhas e folheiam revistas de vestidos de noiva, os miúdos jogam à bola e à apanhada e lançam papagaios no ar, os rapazes mais velhos circulam de carro a galar as moças bonitas e a insultar as que não lhes ligam pevide, as mulheres maldizem umas das outras, passa um vendedor de pão e bolos numa trotinete e um espectáculo de fantoches ambulante estaciona em frente a um túmulo para descontentamento da sua residente. Substitua-se túmulo por casa e está-se perante uma cidade perfeitamente normal (e que tanto faz lembrar as portuguesas).
Claro que se fala uma ou outra vez de fantasmas e os anciões conseguem dizer quem jaz em cada túmulo (às vezes, os próprios parentes ou amigos), o que se entende, todos moram em jazigos (cuja renda chega a ser maior do que a de um apartamento na cidade), de vez em cada até têm de sair de casa quando alguém vem visitar um morto. Mas são quase pequenos apontamentos humorísticos. Tréfaut tem olho para as suas personagens e sabe fazer um documentário de entretenimento, que se vê como ficção (não espanta, por isso, que o anunciado próximo filme do realizador se afaste do documental).
“Waiting for Paradise”, a curta-metragem que acompanha “A Cidade dos Mortos”, é apenas um complemento, uma sequência que Tréfaut não conseguiu enfiar na longa, e que, portanto, não lhe acrescenta muito. Tem-se mais uma vez o choque entre a morte e a vida, desta vez representada por um casamento, com muita festa e música e em que bailarinas descascadas contorcem o ventre. Um dos velhos que aparece nos dois filmes diz que no seu tempo não se misturava enterros e celebrações, o que “A Cidade dos Mortos” e “Waiting for Paradise” tratam de desmentir uma e outra vez.
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