“A Gaivota” de Sándor Márai
Cada ser humano é um planeta perdido
Será possível um homem apaixonar-se por uma mulher que já não se encontra no mundo dos vivos? O escritor húngaro Sándor Márai nem tem dúvidas e isso pode ser comprovado através da leitura de “A Gaivota” (D. Quixote, 2016), um livro que se alicerça numa deliberada indefinição entre o real e o imaginário, entre o verosímil e o fantástico.
No epicentro da trama está um alto funcionário ministerial, de nome incógnito, culto, solitário e seguro. Alguém que, em plena segunda guerra mundial, acaba de ordenar uma decisão que, numa questão de horas, afetará milhões de pessoas.
Apesar do peso que carrega, a sua serenidade, aparentemente imutável, desmorona-se com algo inesperado: uma lindíssima jovem finlandesa de poético nome (Aino Laine ou a «Única Onda, em finlandês) dona de uma notável semelhança com a única mulher que ele amou, morta há anos. Contrariando o que aconselha a prudência profissional e o decoro, arrisca convidar a desconhecida para o acompanhar à noite de ópera que tinha planeado para esse mesmo dia.
Inicia-se assim um diálogo íntimo e profundo onde sedução, paixão, nostalgia e destino combinam entre si e provocam uma perturbante transformação no sólido equilíbrio burguês do sensato homem. O hermetismo inicial da jovem acentua uma sensação de confusão mas é encarado como uma espécie de segunda oportunidade quando o cenário se assemelhava resignado à infelicidade. A sua anterior amante havia cometido suicídio depois de se ter envolvido numa conturbada embrulhada sentimental (e sexual) e ter colocado fim à vida, para, supostamente, parar uma dor que teimava em manter-se mas que, afinal, tornou-se ainda mais conflituosa, para outros, além da sua morte.
Escrito na terceira pessoa, “A Gaivota”, publicado pela primeira vez em 1943, carrega uma ambiguidade latente muito característica, por exemplo, nas grandes obras de suspense pois nada é muito claro, declarado. Não nos é possível discernir a fronteira entre sentimentos legítimos e elevadas doses de perversidade.
Mesmo no que toca aos protagonistas, o trio entre o homem e as duas mulheres, uma morta, outra viva, faz-se acompanhar por uma sombra ubíqua sob a forma da morte, servida por Márai como um personagem de “corpo inteiro”. Ficamos (as)sim entregues a uma narrativa assente em quatro vértices que desafiam essa extrema e estranha entidade que ousamos apelidar de condição humana, sempre sublinhada por um ceticismo cru que nos faz lembrar, a ferros, que, muitas vezes, desconhecemos o nosso verdadeiro íntimo sendo o corpo apenas uma evidência, uma matéria que se transcende. Esse descontrolo emocional, essa falência, percebe-se melhor pois estamos perante um escritor que sentiu na pele o fracasso das relações interpessoais.
Neste romance que se funde num misto de paixão, morte e onírico, Sándor Márai edificou uma narrativa requintada, reflexiva e profunda cujos personagens deambulam por e através das suas emoções na tentativa de as apreender, sendo, no fundo, figuras trágicas, fatalistas, que desafiam o destino.
O amor, na perspetiva de Márai – e porque não dizê-lo por forte influência do contexto bélico da Segunda Grande Guerra em que este livro se insere -, é uma miragem, uma ilusão insustentável, desumanizadora, que promove, tal como a própria guerra, a transformação da noção de pessoa cujo molde é formado por um misto de desencanto e ironia. Resta-nos, enquanto leitores, ou recetores de uma mensagem de código próprio, sentir a evocação de um tempo antigo, quando a literatura a arte e a paixão viviam numa reclusão tolerante onde era possível transformar o sofrimento em algo belo.
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