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A luz ilumina o quê?

Entrevista com Miguel Castro Caldas, Bruno Bravo e Gonçalo Amorim, responsáveis por "Maria Mata-os", o espectáculo dos Primeiros Sintomas que marcou o arranque de 2010 no Maria Matos

“Maria Mata-os”, a primeira produção em 2010 dos Primeiros Sintomas, esteve de 12 a 20 de Janeiro no Teatro Maria Matos, numa curta série de oito espectáculos. Agora que já passou  quase um mês, ao olharmos para os dossiers de imprensa, vemos que a proposta não foi bem recebida pela critica e que tal se deveu a uma incompreensão pelas razões que levaram os Primeiros Sintomas a meterem-se com a Revista à Portuguesa. Para Rita Martins do Público ela é uma “ avó que não conheceram mas de quem ouviram falar” e que mais valia terem  deixado descansar em paz. Rui Monteiro da Time Out pergunta que questão edipiana teria motivado esta vontade de trabalhar sobre um género que terá tido o seu último estertor com Passa por mim no Rossio. O que acaba, de certa maneira, por reactualizar a conversa que tivemos, antes da estreia, com Miguel Castro Caldas (M.C.C.), o autor, e Bruno Bravo (B.V.) e Gonçalo Amorim (G.A.), responsáveis pela encenação.

Tudo começou por uma ideia do Bruno Bravo de fazer  “um espectáculo que enchesse o palco, que envolvesse as pessoas que costumam trabalhar nos “Primeiros Sintomas”, pô-las todos juntos,  e que fosse um espectáculo livre.”

G.A.: Pois, e havia esta vontade de fazer algo mais musical, também, de trabalhar uma coisa que fosse mais desconexa, ou que pudesse ter vários números, e falou-se nisto de fazer uma revista…

Eu não vos vejo muito próximos da realidade do teatro de Revista…

GA: Nada… a primeira vez que fomos à Revista foi agora quando tivemos que nos documentar.

BV: Há um fenómeno interessante, é que a revista em Portugal durou durante 80 anos, que foi um fenómeno único na Europa, não é?

MCC: Mas ao mesmo tempo a revista está decadente para aí há 70 anos. Há o lugar-comum, aquela coisa que se diz que a revista passava por cima da censura. Não é bem assim, porque também convinha ao regime haver a revista, porque a revista fazia crítica mas reflectia, a revista reflecte sempre, a opinião média e o regime também precisava que houvesse um sítio onde achasse que ali as pessoas são inofensivas, têm uma catarsezinha e tal, mas também não vão fazer mal a ninguém.

Esta ideia de um dramaturgo estar a falar sobre um espectáculo no meio dos encenadores, não é muito frequente…

MCC: Tu é que chamaste os três…

GA: É raro, mas não é inédito.

MCC: No meu caso tem sido sempre assim, nunca fiz de outra maneira.

GA: Se bem que este processo é particularmente colectivo, se quiseres dizer assim. Não havia texto quando começámos. Havia uma pequena base…

BV: Os actores tiveram também uma importância muito grande, ao reagirem ao texto do Miguel e depois o Miguel a reagir à reacção dos actores ao seu texto.

É preciso uma certa confiança para que o trabalho sobre o espectáculo se suspenda, à espera que o autor venha trazer mais ideias…

GA: Isso foram as nossas regras. O Miguel instalou a impressora e o computador na sala de ensaios, portanto ia saindo papel fresquinho…A certa altura parou, não é? Parou, quer dizer, parou em termos estruturais. Nós queríamos fechar, queríamos chegar ao fim.

BV: Nós então chegámos à ideia de estrutura da revista, uma estrutura que a Revista propõe.

GA: Há um grande quadro de abertura em que o ““compère”” tenta anunciar um espectáculo que nunca mais começa…

BV: A ideia não foi fugir aos materiais da Revista, não é? Foi tentar aprofundar os materiais sem fugir deles…Começámos a pensar o que é uma sinfonia de abertura, o que é um quadro que agarre o espectador?

MCC:  E houve uma ideia muito clara, acho eu. Acho que foi das vezes em que senti que ao escrever havia uma ideia clara. A de que o palco e as luzes são sempre uma coisa que tem atrás dela uma realidade, uma realidade qualquer.

BV: Esta zona da verdade começou-nos a interessar, esta coisa do espectador ver o que está no palco, mas há qualquer coisa atrás do palco que o espectador não vê e isso pode ser interessante.

GA: Abre a cortina e fica-se no Rossio durante um bocado, e depois vem aquele kabuki estranho, portanto é uma gestão de expectativas. Trabalhamos em fendas, em zonas que não são de ninguém. Quase como o próprio conceito de trabalhar a Revista, uma companhia independente, jovens criadores a trabalharem a revista?! É uma espécie de tabu, ou de preconceito!

MCC: E havia o problema da escadaria. Desde bastante cedo havia o problema da escadaria. A Revista tem a escadaria no fim…Os actores descem a escadaria de uma maneira hierárquica, não é?, Porque o actor mais importante é o último a descer. E nós passámos imenso tempo a bater pedra a pensar como é que íamos abordar isto, como é que íamos pegar neste problema.

Dois encenadores no mesmo espectáculo…como é isso?

GA: – Ensaiadores, não é?

Encenadores. Ensaiador, é por causa da estrutura da Revista…

GA: Não, não, é porque temos que ensaiar. O encenador não precisa, o ensaiador tem que ensaiar. É obrigado!

BV: Há um certo mistério, acho eu, à volta desta questão também. Mas eu acho que tem a ver com teatro, a capacidade de diálogo, não é? Como é que um criativo consegue dialogar com outro? A minha experiência como encenador está muito ligada a isso, de as coisas se irem descobrindo também na relação com os outros.

MCC: Mesmo que o texto esteja pronto antes de começar os ensaios, nunca está completamente pronto, por mais próximo de estar pronto que esteja. Para mim um autor que esteja vivo, um dramaturgo que esteja a trabalhar, não vejo outra maneira senão acompanhar os ensaios.

Quando li o texto da abertura, do “compère”, fiquei  logo muito curioso em saber como é que vocês tinham encarado aquele material pela primeira vez…

GA: Poucas vezes o Miguel nos surpreendeu e poucas vezes nós surpreendemos o Miguel. A verdade é que nós já trabalhamos juntos há algum tempo. Havia uma expectativa que era a da chegada do primeiro material. E eu sabia que o material que viria seria bom, e foi logo. Nós lemos o “compère”  e dissemos logo, o Miguel apanhou o tom da revista.

Mas isto não era um espectáculo de revista?!

GA: Era um espectáculo que parte da revista. Isso ajudou o Miguel a concentrar-se nesse sítio. Diz-lhe, eu não posso errar no tom. Independentemente de todos os conceitos, nós não podemos gozar, não podemos gozar com a revista…

Mas vocês gozam com a revista…

MCC:  Sim, claro, mas não é esse o ponto de partida.

BV:  Nós gozamos connosco também, com o teatro…Acho que nós partimos de uma relação criativa muito honesta  com a estrutura. Nunca nos passou pela cabeça ironizar com ela, interessou-nos muito a estrutura como inspiração…

A revista pode inspirar-vos?! Como?

BV: A linha fragmentada, fragmentária…em que não tens…tens um quadro que de repente pode ser interrompido por um momento musical…uma imensa liberdade ao mesmo tempo…

GA: Queríamos uma comunicação com o público, com quem está ali á frente, na linha do rap, na linha do teatro feira, que interage, que fala para a frente, de forma aberta, de forma despretensiosa…não temos a pretensão de destruir a revista, nem de a reerguer…

E qual foi a relação que tiveste com esta estrutura, Miguel?

No princípio tive muito medo. Eu não podia estar a chegar à revista. Isso seria uma catástrofe. Não é chegar à revista, é partir dela. Isto parece muito simples. Depois o falar da actualidade. Parece também muito simples. Mas não é, corre-se o risco de ser uma coisa completamente irrelevante…

Pareceu-me que a imersão na estrutura da Revista vos permitiu chegarem ao non sense, ao absurdo. Porque é que escolheram o Harold Pinter para começar a segunda parte?

MCG: É como se a primeira parte continuasse a acontecer noutro sítio enquanto nós íamos a um outro local, interior, em simultâneo. E depois a revista vai entrando, gradualmente, dentro de casa.

GA: Eu já nem sei como isto surge. Alguém diz, temos de começar no interior, e alguém responde, mas no interior de quê? De ti, de uma casa? E de repente sim, é no interior de uma casa…

BV: E aí chegamos à comédia de porta, alguém sempre a entrar…

A segunda parte pega nas questões da segunda parte. Um delas é a dos direitos de autor. Tens uma obsessão com isso?

MCC: Não diria que é uma obsessão. É uma questão a que sou sensível. Os direitos de autor são para proteger o comércio, não os autores. Não protege autor nenhum. Não salvaguarda direitos nenhuns. É uma mentira.

Para terminarmos, uma pergunta para o Bruno: disseste que tinhas começado por querer encher o palco. Vejo que acabas por o esvaziar completamente, no final. O que é que aconteceu?

BV: Eu acho que há quase que dois finais. Eu acho que o espectáculo esvazia mas a ideia é dar corpo a esse esvaziamento. Não haver uma sensação de desistência. Trabalhar neste paradoxo entre o vazio, o acabar, e isso ter uma forma qualquer.

E que público é que esperam que venha?

BV: É giro isso porque nós optámos por chamar a isto revista. O público que gosta de revista vai dizer que isto é uma vergonha porque não é revista. E o que não gosta de revista vai dizer que isto é uma vergonha porque é revista.

MCG: É um espectáculo para as pessoas, não para os públicos. É até pretensioso pensar nisso, o ideal é não sabermos quem vem. Como diz o Manuel de Oliveira, “públicos são os urinóis”.



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