“A Maldição de Ondina” | António Cabrita
África é uma metáfora de todo o tamanho
Depois da edição brasileira em 2011 e de ter estado entre os finalistas do Prémio Telecom no ano seguinte, eis que 2013 traz à luz da edição nacional “A Maldição de Ondina“, o primeiro romance do luso-moçambicano António Cabrita que, diga-se como entrada, é uma pequena-grande proeza.
Com uma escrita onde se sente uma veia de poeta a pulsar ruidosamente, António Cabrita oferece uma metáfora de um continente que não dorme, antes vive num eterno estado de vigília. O romance é composto por cinco histórias, onde personagens se passeiam por Moçambique – mas também Lisboa – cercados por violência, corrupção e abuso de poder.
A história começa com uma espécie de cerco, em que os cunhados de um traficante morto na prisão ocupam a sua casa, esbofeteiam a cunhada e delapidam sem piedade uma garrafeira construída com amor durante uma vida, tentando descobrir onde estará escondida uma pequena fortuna. Os gritos e o prenúncio de violência são tão intensos que Raúl, um polícia que vive no 7º andar do prédio, desce para ver o que se passa, até que uma lâmina lhe penetra as costas e a morte passa a milímetros de distância.
Seis meses depois somos apresentados a César, personagem central e amigo íntimo de Raúl, que se divide entre o acto de ensinar e o de escrever, incapaz tanto de manter acesa a relação com a mulher – Beatriz, professora de Literaturas Africanas – como de apagar os vestígios incandescentes deixados por Argentina, a ex-namorada, gestora numa ONG. Mas há também Aurora, uma cozinheira que em tempos teve sangue de libertária e portadora de uma estranha doença: uma mão de sal; ou a presença de Rita Hayworth, que é como que o fantasma que vai unindo o passado e o presente.
Usando uma linguagem vibrante e inventiva, com tanto de romântico como de violento, António Cabrita escreveu um livro de memórias vivas, sobre um país que vive, também, ele, a maldição de Ondina: assim como os golfinhos, que dormem com um dos olhos abertos para não morrerem afogados, Moçambique tem também de montar vigília e evitar o sono profundo, não vá morrer num mar de corrupção onde parece não haver lugar para a praia-mar. Apenas marés cheias. Uma grande edição da Abysmo.
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