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“A Novela do Gordo Entalhador” de Antonio Manetti

Novela humorística com apontamentos de crueldade.

Recentemente editada, numa versão traduzida e anotada pelo historiador André Belo, A Novela do Gordo Entalhador (Tinta-da-china, 2023) é uma obra escrita por Antonio Manetti e originalmente publicada em 1480.

André Belo conta, na introdução da obra, que foi enquanto investigava para escrever o livro Morte e ficção do rei Dom Sebastião (Tinta-da-china, 2021) que se deparou pela primeira vez com esta novela, tendo ficado, desde então, com o desejo de a traduzir e dar a conhecer aos leitores portugueses. Trata-se efetivamente de um texto inquietante e fascinante a vários títulos, centrando-se na questão do desdobramento e crise do sujeito, expondo-nos perante a perturbante dependência do consenso social, sem o qual – quem somos, a começar pelo nome que temos, a profissão, o estatuto e mesmo os bens que possuímos – a nossa existência fica posta em causa.

A conspiração existiu realmente e foi planeada e executada no ano de 1409, na cidade italiana de Florença, onde um grupo de “homens de bem”, composto por artistas e membros da alta sociedade, se reúne habitualmente para jantar aos domingos. Numa dessas ocasiões, todos dão pela ausência injustificada de um dos convivas, o que foi entendido pelos seus pares como uma forma de insolência e presunção. É ele Manetto Ammannatini, a quem tratam simplesmente por Gordo Entalhador, em alusão às suas avantajadas formas e ao ofício a que se dedica, mas também ao seu temperamento simplista, a roçar o ingénuo ou até palerma.

É então que, na mente de um deles, Filippo Bruneleschi – «o homem que anos mais tarde seria responsável pela construção da espantosa cúpula da catedral de Florença, Santa Maria del Fiore, um marco na história da arquitetura», como escreve o tradutor André Belo nas notas introdutórias do livro – se forma uma ideia: expropriar o pobre artesão da sua identidade, levando-o a acreditar que se tornou outra pessoa, como retaliação pela desfeita infligida a um grupo cujos membros «eram quase todos de melhor qualidade e condição que ele».

Assim, todos à sua volta começam a tratá-lo pelo nome de um tal de Matteo, sendo depois aprisionado por dívidas alegadamente contraídas pelo mesmo Matteo, situação só possível com a conivência e colaboração de membros da administração florentina, do tribunal de contas e oficiais da prisão, além da participação dos irmãos do (verdadeiro) Matteo e outras figuras de prestígio social.

A burla entra numa nova fase quando o Gordo é retirado da prisão, através do (suposto) pagamento da fiança pelos irmãos, que o levam para casa, dão-lhe jantar e drogam-no. Profundamente adormecido, é então levado para sua casa, onde lhe mudam as coisas de lugar e o deitam na cama virado ao contrário.

Quando acorda, o Gordo acredita ter voltado a ser quem era, embora sempre assaltado pela estranheza e incerteza, adensadas pelo facto de o verdadeiro Matteo contar uma versão simétrica do que aconteceu. A confusão mental em que mergulha, só se desvanece quando por fim descobre que tudo não passou de uma farsa, para mais congeminada por Brunelleschi, a quem ele tinha por amigo e modelo. A contas com uma neurose, toda ela cruelmente orquestrada, sente-se então profundamente humilhado e decide partir de Florença rumo à Hungria, onde acabaria por alcançar por fim o sucesso e a riqueza.

Brunelleschi é efetivamente uma das figuras centrais do Renascimento, fundamental na conceção do expediente geométrico da perspetiva, sendo por isso, particularmente assinalável a relação entre estes estudos sobre a perspetiva e esta história. De certa forma, o que Brunelleschi congeminou e quis aplicar ao Gordo, foi a transposição das suas experiências sobre a perspetiva para a vida em sociedade. Uma espécie de engenharia social em que convergem para a figura do Gordo todos os olhares e em que, pelo contrário, este acaba desprovido de perspetiva estável e sem ponto (ou possibilidade) de fuga.

Mas eis que – conforme aventa André Belo – a passagem dos séculos muda os códigos morais com que lemos a novela e os responsáveis pela partida se transformam aos nossos olhos em atores cruéis, sem misericórdia do drama humano que infligem ao Gordo, com as consequências que daí resultam. Se essa for a experiência do leitor de hoje, talvez ele sinta um ligeiro incómodo com as descrições da galhofa feita às custas do entalhador. O riso incapaz de acompanhar o que terá sido a intenção cómica original do texto, compadece-se com a sorte do protagonista, resgatando-o do ridículo. No fim de contas, a leitura, que é sempre relativa, modifica a perspetiva.



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