“Abismo e outros contos” | Jean Meckert
Somos aquilo que escrevemos
A vida de Jean Meckert esteve longe de ser fácil. Figura rebelde das letras francesas, Meckert nasceu em Paris a 24 de Novembro de 1910, tendo sido separado da família em 1920 e enviado para o asilo Lambrechts, uma instituição protestante situada em Courbevoie. Desses quatro anos de orfanato ganhou uma repulsa pelo ensino religioso, guardando para sempre, dentro de si, os sentimentos de abandono e humilhação.
Na escola revelou-se um bom aluno, obtendo o diploma do ensino primário e trabalhando como aprendiz numa empresa de construção de motores eléctricos. Em 1927, já como empregado de escritório, ingressa no Crédit Lyonnais, lugar onde a sua mãe trabalhava como empregada de limpeza. Apanhado pela crise em 1929, Meckert perde o emprego e vai subsistindo através de pequenos trabalhos.
Para escapar a esta vida miserável alista-se no exército em 1930, por um período de dezoito meses, sendo punido com várias penas de prisão por ausências injustificadas, conseguindo ainda assim ser promovido ao posto de cabo pelo comandante da 5ª Companhia de Engenharia.
Ao regressar à vida civil em 1932, vê-se novamente mergulhado na pobreza. Estávamos na grande época do desemprego, onde era necessário fazer de tudo para sobreviver, e Meckert deitou a mão a tudo o que conseguiu, como o trabalho de vendedor ambulante ao portão da fábrica da Renault.
O seu quarto de hotel, em Belleville, torna-se a sua «última trincheira», o refúgio onde escreverá narrativas inspiradas na sua própria existência, designadamente os três contos publicados, agora, em “Abismo e outros Contos” (Antígona, 2013): “Um Crime”, “O Bom Samaritano” e “Abismo”. Três textos onde se sente uma juventudeem rebeldia, que terão sido o ensaio para “Les Coups”, romance publicado em 1941 pela editora Gallimard a partir do conselho entusiasta de Raymond Queneau.
“Um Crime” acompanha o dia-a-dia de um representante de máquinas de escrever, que percorre a pé os subúrbios de Paris com uma máquina debaixo do braço, aliando o pouco jeito que demonstra para as vendas com um sentido ético que não lhe permite enveredar por golpes e estratagemas que levam à venda certa – uma espécie de golpe cujas consequências serão resolvidas pelo departamento jurídico da empresa. Porém, quando a sobrevivência dita as suas leis, há que mudar de paradigma, mesmo que no final o sentimento de culpa prevaleça; “O Bom Samaritano”, conto passado num posto de polícia à entrada de um campo militar, pode ser lido como uma metáfora à entreajuda, e de como o bom samaritano pode surgir de onde menos se espera; “Abismo” é o grito de revolta perante a oragnização da sociedade. Dedicado a todos os derrotados e solitários do mundo, traça a espiral de loucura de um jovem mergulhado na penúria, definhando aos poucos num quarto de hotel até que o suicídio surge como a única porta possível de transpor.
Jean Meckert é autor de uma escrita directa, despojada e carregada de raiva contra a sociedade, mantendo aceso um espírito de revolta que, à primeira oportunidade, não deixará de se manifestar. “Somos aquilo que escrevemos”, diz-se por vezes nos corredores da literatura. No caso de Jean Meckert, esta máxima foi um modo de vida.
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