Águas Mil
No baú de memórias pós-revolução.
“Águas Mil” segue a história de Pedro, um jovem encenador cuja infância foi assombrada pelo misterioso desaparecimento do pai. Será a procura de respostas para este enigma que inicia a viagem: Ivo M. Ferreira propõe uma interessante aproximação ao período pós-25 de Abril, através do vasculhar de memórias.
Esta viagem corresponde a um certo nível de descoberta pessoal de Pedro e respectivas raízes: não será por acaso que a sua avó seja, mais ou menos directamente, a impulsionadora da viagem. Assim como a cadeia causal que leva as pessoas mais próximas de Pedro a integrarem este seu percurso. Poderá assumir-se que esta cadeia se trata de um microcosmos da identidade de Pedro, movendo-se lentamente em busca de uma peça em falta. E neste contexto, Ivo Ferreira fornece-nos uma versão devidamente distanciada dos factos históricos, para nos situar no verdadeiro núcleo da questão: a personagem.
No entanto, e sendo a aproximação à história um dos seus trunfos, “Águas Mil” tenta gerir um conjunto (demasiado) generoso de personagens. Isto acaba por se tornar numa fragilidade: a narrativa não encontra necessidade de se servir de todos estes peões. Leonor, a mãe de Pedro interpretada por Lídia Franco, parece movimentar-se apenas no sentido de tentar atribuir um contexto histórico mais favorável como pano de fundo, cuja presença me parece questionável. Assim como Sérgio, o melhor amigo, cuja ligação emocional a Pedro não se revela suficientemente forte, como de resto se pode notar pela sua insignificância na viagem, servindo somente como método narrativo analítico (é o condutor).
Todas estas personagens com gestão aritmada acabam por interferir com a verdadeira história de Pedro, que se revela demasiado difusa para se afirmar devidamente acutilante em todas as etapas. Mas, e ainda que estas irregularidades o prejudiquem, “Águas Mil” é fruto de um realizador com uma sensibilidade cinematográfica bastante competente, assim como é muito bem fotografado.
O músico Nick Cave disse, determinada vez numa conferência académica, que nunca soube exactamente o que queria fazer com a sua vida e que só tinha uma certeza: não queria ser como o seu pai, um reputado professor universitário. E, no entanto, vários anos volvidos, ali estava ele, a dar uma aula. “Eu sou o meu pai”, referiu. Desta mesma forma, Pedro acaba por “ser” o seu pai, materializado através dos restos materiais e emocionais que o tempo teimou em não apagar. A cena final é um claro exemplo disto: um confronto que (re)cria o episódio onde o seu pai desapareceu, vinte anos antes. Termina-se a viagem, é tempo de voltar.
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