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“Águas Passadas” de João Tordo

O sabor salgado da morte.

Lisboa, janeiro de 2019. A chuva toma conta da capital, fustigando-a em forma de castigo perpétuo. É sob esse cenário sublinhado pela invernia que surge um primeiro cadáver, no caso de uma jovem de 15 anos, filha de um conhecido empresário britânico.

Pilar Benamor, subcomissária da PSP, é a primeira a chegar à Praia de Assentiz, Sintra, local onde o corpo foi encontrado, e, nem mesmo a sua alma constantemente assaltada por um passado repleto de dor e angústia a prepara para o caso que vai ter entre mãos, pois, dois dias mais tarde, no coração da floresta de Monsanto, em Lisboa, é descoberto o corpo de um rapaz de 17 anos, macabramente assassinado.

Este duplo assassino dá lugar a uma investigação que vai colocar em causa a alta sociedade portuguesa e os meandros mais negros do mundo do crime, onde a pedofilia, o encesto e a cruel e fria manipulação chocam com o espírito de gratidão cega e assassina.

Mas este enredo que pauta Águas Passadas (Companhia das Letras, 2021), aguardado regresso de João Tordo ao mundo do thriller literário, é mais do que isso, sendo o ponto de partida para mais de 500 páginas, divididas em três partes, de um livro (muito) bem escrito, onde a solidão das decisões, em especial de Pilar – uma das personas mais interessantes nascidas do imaginário do autor de livros como A Noite em que O Verão Acabou –, refém de um passado doloroso e da morte do pai, ex-polícia, marca o ritmo de uma narrativa assente em capítulos longos e cativantemente dolorosas e castradores de uma liberdade ameaçada pelo vício da carne e laivos de um severo síndrome de Estocolmo. 

Ainda dentro do complexo universo dos personagens de Águas Passadas, também Cícero Guzmán, ou Gusmão, confesso admirador de Tolstoi, reformado, eremita e ex-dono de uma loja de bicicletas em Colares, é essencial em toda a trama, seja pela sua (omni)presença ou perfil solitário e enigmático.

Outro dos trunfos de Águas Passadas é a forma como conquista o leitor num ritmo muito próprio, propositadamente demorado e lírico, que dá a conhecer os protagonistas, as suas vidas e as dores que carregam como uma pesada herança pessoal ou profissional, marcada pelo sangue bárbara e sadicamente derramado em nome da inveja, ciúme, amor preservo ou simples loucura, muitas vezes enfatizado por sarcásticas tiradas em latim por parte de um médico legista… sui generis.  


Dono de um perfil elegante de um thriller que dispensa o excesso da ação desnecessária, Águas Passadas é um livro intenso, escuro, e de leitura obrigatória, que se centra no drama vivido por quem relata e sente um caso que se repete três décadas depois, arrastando fantasmas e dores que não se apagam e se tornam em feridas que teimam em não sarar, abrindo quando menos se espera. 



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