Alkantara Festival
Um possível rescaldo...
No passado domingo dia 18 de Julho caiu o pano sobre o Alkantara festival, um evento de artes performativas que, de 2 a 18 de Junho incendiou a capital com espectáculos de dança, teatro, performances e instalações, de diversos criadores nacionais e internacionais. A aposta está ganha, o festival foi um sucesso. Esperemos que se consolide nas próximas edições, e, através de um crescimento sustentado – através das parcerias, co-produções e colaborações estabelecidas – se torne numa das “marcas culturais” de Lisboa.
O Alkantara é herdeiro do mítico “Danças na cidade”, um festival com 13 anos de idade, que se foi desenvolvendo no devir dos acontecimentos, foi crescendo em quantidade e qualidade, se foi internacionalizando, foi ganhando popularidade e um certo estatuto, até que em 2002 foi assinada a sua sentença de morte por razões políticas e económicas. É neste contexto que aparece o Alkantara, o “renascimento” do Danças, mas agora com uma nova filosofia: a abertura do conteúdo do festival a novas artes performativas para além da dança contemporânea, o intercâmbio de distintas disciplinas artísticas, de produções de todo o mundo. O próprio nome e subtítulo do festival assim o indicam: Alkantara (que significa “a ponte” em árabe) – Mundos em Palco.
Enquanto grande apreciadora de dança contemporânea, confesso que no meu inconsciente ainda persistia a ideia de um festival composto quase exclusivamente por espectáculos de dança. A verdade é que, fazendo um balanço no final, dos projectos a que assisti, grande parte foram teatro. Não me arrependo. O grande potencial do Alkantara é esse mesmo: o cruzamento de novas formas de arte, a cooperação entre artistas de diferentes culturas. Nos dias que correm, formatados pela cultura de massas, é essencial a existência de “bolhas de Arte”, onde os artistas possam expressar livremente as suas ideias, os seus conceitos, o seu modo de ver e pensar a vida.
Se nos detivermos especificamente no capítulo da dança contemporânea, sabemos que esta não é uma disciplina fácil de “digerir” por parte do público. Ao contrário das danças “tradicionais” ou “étnicas”, a dança contemporânea tem sido frequentemente denominada de absurda ou niilista. É compreensível. É bastante mais fácil reconhecer um código genético determinado numa dança tradicional, com os seus passos pré-estabelecidos e os ritmos musicais enquadrados e de fácil percepção para o público, do que admitir que a liberdade, a espontaneidade, a improvisação emanadas da dança contemporânea possam estar inscritas na tradição europeia. É por isso que a evolução do Alkantara em abarcar novas linguagens permitiu a captação de novos públicos. Este ano incluiu uma aposta forte no teatro, e quem sabe no ano de 2008 não será a vez da música.
Falando na minha experiência pessoal no Alkantara, muita coisa interessante ficou por ver. A minha vontade seria ter assistido ao máximo número de espectáculos, mas não me quis tornar numa “papa- espectáculos”, sob pena de cair no cansaço e não poder apreciar convenientemente as criações apresentadas. Citando dois casos flagrantes, falhei o espectáculo de Aydin Teker – “Akabi” – no Teatro Camões, e Bruno Beltrão grupo de rua de niterói – H2 2005. O primeiro tive a oportunidade de visualizar parte em vídeo. Primava pela originalidade e apresentava um grande processo de pesquisa. Basicamente, os bailarinos calçavam sapatos pesados, de diferentes alturas, que moldavam os seus corpos, transformando-os em formas irregulares. No caso do Bruno Beltrão, a sua criação centrava-se na combinação do hip hop com a dança contemporânea. Resultado: um espectáculo explosivo que não me perdoo ter falhado.
Um aspecto bastante positivo que há que destacar foi a diversidade de locais que o Alkantara utilizou em toda a cidade de Lisboa para a mostra das várias apresentações. Porque não sair, quando possível, das salas convencionais de espectáculos, e tentar aliar uma produção artística ao contexto arquitectónico da cidade que realce a própria produção? Esta ideia vingou no dia 4 de Junho – o dia dos Encontros Imediatos – em que o público era convidado a deambular pelas ruas de Lisboa e deixar-se seduzir pelas propostas que artistas nacionais e internacionais apresentavam. Os locais iam do jardim do Torel, ao hospital Miguel Bombarda, passando pela Casa Fernando Pessoa, o átrio do Ministério das Finanças ou a Escola Superior de Dança no Bairro Alto.
A diversidade espacial que o Alkantara alcançou, não a conseguiu ao nível do público. Este compunha-se maioritariamente de pessoas ligadas ao mundo da cultura, uma elite intelectual em que todos se conheciam. Em praticamente todos os espectáculos a que assisti, as caras eram as mesmas, a reciclagem de público inexistente. Chego à conclusão que eventos destes são fechados, para uma pequena clique intelectual. É pena.
Mas como chegar a um público mais vasto? O primeiro passo foi dado: a inclusão de novas disciplinas artísticas no conteúdo do festival, já que, como afirmei anteriormente, a dança contemporânea não tem uma receptividade homogénea por parte do público. Em festivais da mesma índole do Alkantara a que assisti, a organização tentou a aproximação do público com as companhias em palco através de conversas informais após o espectáculo. E o resultado foi brilhante. Pessoas deram a sua opinião, criticaram, opinaram sobre o conteúdo da apresentação, desenvolveram-se diálogos construtivos entre actores e público. As conversas acabaram por enriquecer o festival e quebraram a distância público/actor. Não digo que esta seja a solução para abarcar mais público, mas são caminhos passíveis de análise. Não esquecer que em Arte os diálogos não se devem encerrar nos circuitos fechados dos artistas. Sem dúvida que esses são importantes, mas uma ideia, um simples comentário, por mais absurdos que possam parecer, podem levar-nos sempre a novos horizontes.
Não queria acabar este artigo sem mencionar uns pequenos comentários sobre os espectáculos que vi.
Jan Lauwers & Needcompany – “Isabella’s room”
O ponto de partida ideal para inaugurar um festival. Talvez uma das melhores peças de sempre a que assisti. Quem foi, saiu do teatro S.Luiz leve, alegre, feliz. Era assim que a Arte devia ser sempre.
Esta criação enquadrava dança contemporânea, teatro e uns arranjos musicais geniais, havendo tempo ainda para uma pequena incursão pedagógica ao nível da arqueologia e antropologia. Contava a história de Isabella, uma velha cega que vive num quarto de Paris cheio de objectos étnicos e exóticos. A vida de Isabella encerra uma terrível segredo que a levará a África.
Cada artista em palco vestia a sua personagem de um modo tão puro e sincero que transformava a acção num Todo harmonioso e mágico. O espectáculo acaba com a música «We just go on», uma melodia que não se esquece facilmente, persiste para lá do fim.
Esta peça tem tido um sucesso estrondoso a nível mundial. A cidade onde se registaram as piores críticas foi Nova Iorque, onde os jornalistas a catalogaram de xenófoba e racista.
Teatro Praga – “Discotheater”
Para mim, eis o conceito de uma noite bem passada com um grupo de amigos. Começa à meia-noite e acaba às 6 da manhã. Todo o espectáculo ronda o onírico, é a interpretação de um sonho. O próprio grupo o afirma (talvez já se tenham atravessado no caminho deste grupo com as suas apresentações na galeria Zé dos Bois). Discotheater compõe-se de imagens de autoproclamados mestres, que apresentam a sua mestria, em busca de medalhas e glória. Carregado de sátira, ironia, e muito humor à mistura, os actores vão discorrendo situações bizarras, outras hilariantes.
Assiste-se a parte do espectáculo, bebe-se um copo, fuma-se um cigarro no pátio exterior, volta-se a entrar no “sonho”. Pessoas entram na sala, outras saem. O dinamismo é constante, o aborrecimento nulo. Um projecto do qual gostei muito pela sua originalidade.
Artistas Unidos + Tá Safo – “Paixão segundo João”
Esta nova produção remete-nos para o mundo de um hospital psiquiátrico. Duas personagens, um doente mental e o seu enfermeiro, vão desenvolvendo os seus diálogos, pensamentos, ideias.
De realçar a excelente interpretação de Miguel Borges no papel do doente e Américo Silva no de enfermeiro. No entanto, a extensão da peça e uma certa monotonia no discurso podem “derrotar” o público que a certo momento desliga da acção. Foi o que me aconteceu. Não é uma peça fácil, que necessita à partida de uma determinada predisposição intelectual para absorvê-la.
Rabih Mroué – “Who’s afraid of representation?”
A peça de Rabih Mroué situa-se, se assim se pode dizer, no teatro – consciência, deixa-nos mareados, pensativos. Através de um discurso altamente politizado, com alusões à guerra no Líbano, Rabih conta-nos a história de Hassan Ma’moun que certo dia pega numa kalashnikov e mata os seus colegas de trabalho. Descrevem-se as mutilações e violência perpetradas durante a guerra, com detalhes precisos e sádicos.
Pode ser pura coincidência, ou talvez não, mas regra geral, todos os artistas do Médio Oriente não conseguem esconder a triste realidade que vivem nas suas criações. Em países como o Líbano, as comunidades religiosas abafam qualquer tentativa de liberdade de expressão, acusando de traidor quem tentar escapar do perímetro tradicional. Ser artista é um risco. Mas mesmo do estado de Israel, as produções que vi por exemplo da coreógrafa Yasmeen Godder contêm sempre alusões à guerra e à violência, mas ao mesmo tempo esperança num futuro melhor (veja-se a sua ultima criação Strawberry Cream & Gunpowder).
Jerôme Bel – “Isabel Torres”
No dia 6 e 7 de Junho, foi a vez do consagrado coreógrafo Jérôme Bel apresentar a sua primeira peça, uma auto-biografia da bailarina do corpo de bailado do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Isabel Torres.
A bailarina está no centro do palco e vai revelando o seu dia-a-dia, as suas alegrias, preocupações, contando episódios que viveu no corpo de bailado e mostrando fragmentos das coreografias clássicas já encenadas. O monólogo cria uma cumplicidade com o público, transforma a bailarina num ser humano, provocando uma automática simpatia e cumplicidade com esta personagem. Um espectáculo cuja beleza reside na sua simplicidade.
Luiz de Abreu – “O samba do crioulo doido”
Depois do espectáculo “Isabel Torres”, foi a vez do brasileiro Luiz de Abreu apresentar a sua criação. Um percursionista desenha as sonoridades que envolvem os movimentos de Luiz de Abreu. Este tenta explorar as potencialidades do corpo negro brasileiro. Consegue-o na perfeição. Um espectáculo cheio de imagens fragmentadas, hipóteses, a transfiguração corporal.
Forced Entertainment – “The World in pictures” e “Exquisite pain”
Há 3 anos atrás, assisti à peça que esta companhia britânica apresentou na Culturgest, que consistia na reinvenção até à exaustão de uma história que começa com a eterna frase “Once upon a time” durante 5 horas seguidas. Estava perante uma companhia promissora do teatro experimental inglês.
Voltaram agora com duas peças, “The World in pictures” e “Exquisite pain”. Os ingredientes desta última resumem-se a um homem e uma mulher a lerem histórias de amor que acabaram, tristeza, desilusão e sofrimento. A leitura intensa e repetitiva destas histórias mostra como os acontecimentos se vão desgravando da memória, caindo no esquecimento. Uma performance que quanto a mim pecou somente pela duração: 2h10 min.
O primeiro apresenta-nos um cenário bizarro e louco: conta a história da Humanidade, misturada com jingles, instruções ao público de como devem actuar, etc. No início do espectáculo, o cenário está vazio, somente o corpo dos actores. Depois, ao longo do desenrolar da peça, entram milhares de objectos que transformam o cenário num caos: uma escada amarela, um sofá branco, confettis a imitar neve, ventiladores que imitam tempestades, fitas coloridas, candeeiros, etc. etc. É neste ambiente surreal que se entrelaçam homens das cavernas, a Revolução Francesa, a contemporaneidade, tudo polvilhado com o típico humor inglês. Um espectáculo que fez rir o público com frequência, divertido, irónico. Esperemos que voltem em breve.
Tim Crouch – “An oak tree”
Esta foi talvez a única peça que declaradamente não gostei. Devo ser a única com esta opinião, já que todas as pessoas com quem falei adoraram. O conceito, a teoria é genial: Tim Crouch contracena com um actor que nunca leu o texto nem viu a peça. Desta maneira, cada noite a peça é única, irrepetível, com os gestos e atitudes espontâneas do actor convidado, envolto num ambiente cómico. Na prática, não gostei do resultado. Não consegui “captar” devidamente a comicidade da peça, achei-a demasiado absurda, sei lá. Se calhar estava em dia não.
Alain Platel, Fabrizio Cassol, Les ballets c. de la b. – “VSPRS”
Alain Platel apresenta-nos uma peça ousada: a coreografia inspira-se nos movimentos de doentes psiquiátricos, ao som das Vésperas, uma das obras mais conhecidas de Monteverdi. No entanto, as Vésperas apresentam uma sonoridade diferente, com influências de música barroca e cigana.
Como ouvi alguém comentar, é uma peça difícil, ou se adora ou se detesta. A intensidade musical (vertente ópera) aliada com os movimentos absurdos dos corpos leva a distintas leituras da obra: religião? Política? Talvez ambas.
O que posso realçar é a perícia técnica dos bailarinos…talvez dos melhores profissionais que alguma vez tenha visto.
Vera Mantero – “Um mergulho, pensamento, poesia e corpo em acção”
Se o Alkantara começou da melhor maneira possível, também fechou com chave de ouro, com uma produção portuguesa: Vera Mantero. Um espectáculo de múltiplas imagens, uma alegoria. Muitas maçãs, excertos de textos por todo o teatro, guitarras, a participação do filósofo português José Gil, imaginação ao infinito. Deixo-vos com um dos excertos da apresentação:
“A pergunta de Zizek é a de S.Paulo: “Quem está realmente vivo hoje? … E se somente estivermos realmente vivos se nos comprometermos com uma intensidade excessiva que nos coloca além da “vida nua”? E se, ao nos concentrarmos na simples sobrevivência, mesmo quando é qualificada como “uma boa vida”, o que realmente perdemos na vida for a própria vida? … E se o terrorista suicida palestino a ponto de explodir a si mesmo e aos outros estiver, num sentido enfático, “mais vivo”..? Não vale mais um histérico verdadeiramente vivo no questionamento permanente da própria existência que um obsessivo que evita acima de tudo que algo aconteça, que escolhe a morte em vida?”
Se no passado, Lisboa deu “novos mundos ao Mundo”, que tal o Mundo agora retribuir? O Alkantara festival é a passagem. Parabéns à organização.
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