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Amor Fúria

Aqui não há capelinhas.

Uma manhã de Terça-Feira, um frio polar, a Brasileira no Chiado e três indivíduos sentados na esplanada. Passam despercebidos ao olhar de quase toda a gente. São eles Luís Afonso, baixista d’Os Golpes, Manuel Fúria, voz e guitarra também d’Os Golpes, e Pedro “Almirante” Ramos, metade do duo O Verão Azul. Em comum? O facto de serem os actuais responsáveis pela Amor Fúria. Começam por recusar a existência de funções pré-definidas e não negam a associação à FlorCaveira. “Depósito de Inúteis”, uma compilação composta por um tema de cada um dos artistas da editora editada pela Optimus Discos, foi o pretexto para uma entrevista que é também um balanço destes primeiros anos de vida. Deixámo-los falar, coisa não muito comum noutros meios em que o espaço é limitado. A Factory, música electrónica, os bifes do Chiado e, enfim, a música portuguesa. Hoje.

Podem-se apresentar referindo o vosso nome e função na Amor Fúria?

Pedro “Almirante” Ramos: Temos funções?

Luís Afonso: Luís Afonso, braço direito e perna esquerda da Amor Fúria.

Manuel Fúria: Manuel Fúria, coração e cabeça.

PAR: Pedro “Almirante” Ramos, estômago da Amor Fúria.

O “Depósito de Inúteis” funciona como um balanço destes primeiros anos da Amor Fúria?

MF: O “Depósito de Inúteis” é o ponto de cristal do que começou a ser construído algures em 2007. Acho que “ponto de cristal” é uma expressão adequada não é? [vira-se para os companheiros de editora]. É um percurso com algumas histórias, apesar de curto. E para nós é um orgulho ter um objecto que, apesar de díspar e inconsequente – não tem uma unidade em si -, traduz uma vontade inicial que se conseguiu concretizar, com a ajuda de todas as pessoas que estão envolvidas, dos artistas e bandas, de algum bom espírito de diálogo e de algum espírito de gratuitidade num universo em que é preciso sobreviver.

LF: Eu acrescentava mais uma coisa. Em relação ao conteúdo do “Depósito de Inúteis”, poderia ser [interpretado como] um “best of” das bandas… não é o que acontece. Tem mais um cheiro daquilo que pode vir a ser o futuro do que propriamente o melhor que [já] se fez.

MF: Até porque são inéditos.

LF: Sim, são inéditos e as bandas sentiram espaço para experimentar coisas novas e não tentar fazer disto um cartão-de-visita.

Não é tanto um balanço, mas mais uma perspectiva de futuro…

LF: Exactamente.

A associação que muita vezes se faz entre a Amor Fúria e a FlorCaveira. Faz sentido?

MF: Faz sentido na medida em que começámos juntos. O que aconteceu foi que, quando a Amor Fúria começou – [e] isto se calhar tem a ver com o meu espírito de pôr a carroça à frente dos bois e de querer fazer as coisas acontecer quando as ideias surgem, para não morrerem -, as bandas ou projectos que nós imaginávamos que pudessem fazer parte, [ou] estavam todos mais ou menos em inactividade, ou não tinham nada lançado, ou não havia dinheiro ou meios para os lançar. A FlorCaveira existia desde 1999. Nós conhecemos a malta da FlorCaveira, gostávamos imenso das coisas que eles faziam e achámos que era uma boa oportunidade de arranque – começar a organizar concertos com eles que estavam um bocado parados e com projectos novos que estavam a começar. Eles [FlorCaveira] tinham mais consistência como artistas. Foi uma boa maneira de dar arranque à Amor Fúria.

PAR: De certa forma, eles [FlorCaveira] já existiam e nós ainda não. Quisemos trazê-los das “catacumbas” – metaforicamente falando – para um público mais vasto, para o máximo de gente possível, para Lisboa e para as [outras] cidades. Foi nesse espírito que nasceu a nossa relação com a FlorCaveira e por isso é normal que exista – no início, principalmente – uma associação. E nós gostamos de ter isso na nossa história. Foi o início de um caminho que nos trás até aqui, agora, hoje.

MF: De alguma maneira, se a FlorCaveira não existisse como movimento ou grupo de amigos que tem um nome ou [que faz parte de uma] editora… muitos dos seus artistas seriam artistas [com] que a Amor Fúria gostaria de trabalhar. Havia uma ligação natural.

Há coisa de um ano, falava com o Tomás Cunha Ferreira d’Os Quais e ele tentava-se distanciar ao máximo dessa associação. Porque acham que isso acontece?

MF: Eu acho que acontece porque a FlorCaveira tem um contexto muito específico – de amigos, primos, malta que frequenta a mesma igreja, etc – e as coisas na Amor Fúria são bastante mais heterogéneas. Então, claro que é muito mais complicado para o Tomás e para Os Quais associarem-se a uns tipos que mal conhecem ou que não têm uma amizade como nós [temos]. A coisa na Amor Fúria, de certa maneira, funciona mais como uma editora tradicional, na medida em que são artistas mais separados entre si e não um grupo de amigos.

LF: Sim, e eu ponho em questão [o facto] do Tomás sentir que faz parte da Amor Fúria. Não sei como surgiu o desafio da Amor Fúria aos Quais para os editar, mas não tem nada a ver com as relações que acontecem na FlorCaveira ou [entre] o Manuel e a FlorCaveira. Daí a necessidade de ele se afastar. Os Quais são uma banda distinta que por acaso editou o primeiro disco na Amor Fúria. Provavelmente nunca iremos trabalhar mais com eles… ou poderá acontecer. Presumo que hajam mais bandas ou mais elementos de bandas que editam pela Amor Fúria que citam o mesmo e que não sentem essa ligação com a FlorCaveira ou até com a Amor Fúria como movimento.

PAR: Até porque a nossa ideia não é pôr a editora à frente dos artistas ou lançar uma espécie de marca ou movimento que está acima dos artistas. Os artistas são as nossas armas, são os pontas-de-lança para uma coisa maior de que a Amor Fúria é suporte. Compreendo isso vindo de alguém que considera [que] a sua banda que está acima das editoras. É normal. E é isso que nós defendemos também.

MF: Até porque Os Quais… o Jacinto [Lucas Pires] e o Tomás fazem música juntos desde os 15 anos. Eles já têm 35 ou 37 anos, eles existem e têm uma identidade que ultrapassa, em larga escala, a coisa mais recente da Amor Fúria ou mesmo a coisa mais recente da FlorCaveira. Acho que, por um lado, interessa-lhes preservar essa identidade que é alheia aos nossos devaneios.

Não sei se já tinham pensado nisto: A FlorCaveira e a Amor Fúria são compostas por duas palavras que, de certa forma, se contrastam. É propositado ou nem pensaram nisso quando criaram as editoras?

MF: É um acaso. O nome da Amor Fúria surgiu por duas razões: primeiro porque, na altura, o nome que queria… queria que fosse [formado por] dois opostos [que] juntos gerassem uma coisa nova. E segundo, devido a uma canção dos Heróis do Mar, uma canção chamada «Amantes Furiosos». E cumpriu-se esse meu objectivo. O Pedro gostou imenso… Não foi nada combinado.

PAR: Não foi nada pensado, mas de certa forma pode ter um simbolismo muito próprio e interessante nesse aspecto mais mediático e [em] que as pessoas reparam. Se calhar, é um acaso, mas é [também] o destino, digamos assim. (Risos)

No vosso site têm um texto que diz “Com os olhos postos no passado, no presente e no futuro, tudo ao mesmo tempo, sem distinção aparente, aqui, agora, e três-dois-um, já!”. Os Golpes referem em «Arraial» que “isto é folclore disfarçado de rock n’ roll”. A ideia inicial da editora seria pegar no passado e digamos que transpô-lo para o presente, com uma ideia de modernidade?

MF: Acho que falamos de coisas separadas quando falamos na Amor Fúria e n’Os Golpes – apesar dos óbvios pontos em comum. A ideia aqui é uma ideia de património que Portugal tem e que, para nós, não faz sentido que seja uma coisa associada a um tempo que já foi ou ao tempo que virá… ou a este tempo. É uma coisa que existe, ponto final. O património de Portugal tem uma existência imune ao tempo e nós, Amor Fúria, colocamo-nos com intenções de renovação desse património e de invenção de mais património, venha ele de onde vier. Daí ser uma coisa imune ao tempo.

PAR: E de certa forma espontânea… Não sei se ias acrescentar, mas esse texto também espelha uma espontaneidade, aquilo que brota naturalmente e que existirá para sempre, que é a nossa necessidade de nos expressarmos em português, para portugueses, em Portugal e construindo este património comum que nos une naturalmente.

LF: Queria só perceber, em relação à pergunta – para ficar claro -, em relação ao “ontem, hoje e amanhã”, em relação ao facto de haver o registo de algumas bandas que tenha um cheiro de tradição: Se na Amor Fúria, como editora ou movimento, pode existir esse cheiro, em termos estéticos, não é um factor que esteja na lista de coisas…

MF: Não é critério.

LF: Não é um critério, não é bandeira nossa que as bandas reinventem o passado ou o que for.

PAR: Não há nenhuma agregação nesse espírito. Não é isso que agrega as bandas e as nossas ideias de edição ou de apoio a bandas que estão a começar. É muito mais podermos editar coisas que vão acontecendo porque são espontâneas e naturais.

MF: Outra coisa que gostava de acrescentar – que é uma espécie de ponto de partida de humildade e pequenez – é perceber que as coisas não começaram agora e que antes de nós há coisas boas e más, há história. Há situações que definem a nossa identidade e isso é um ponto de partida para a Amor Fúria. Nós não aparecemos no vazio. Aparecemos como consequência de muita coisa – em última análise, de 800 anos de história. É uma realidade que não nos é alheia. Não é um critério, mas é um ponto de partida, porque, de facto, as coisas ou os movimentos culturais em Portugal não começam connosco. Connosco começa uma perspectiva ou um suporte de oferecer novas perspectivas às vozes dos artistas.

E a contratação desses artistas? Há uma ideia de família nesta editora. É essa ideia que permanece ou também há atentos olheiros?

LF: Eu acho que na Amor Fúria acontece de tudo. Desde o [facto de o] Manuel inventar uma banda como os Capitães de Areia – que nunca pensaram ser uma banda até ao Manuel sonhar por eles e eles apanharem esse sonho e construírem-no -, [até] bandas que vêm ter connosco porque já nos conhecem e nós acreditamos que devem fazer parte do catálogo. Há bandas e projectos que somos nós a dizer “temos que agarrar estes tipos, têm de ser nossos”. Há uma grande mistura e por isso alguns são família, outros são primos afastados, outros são contratados.

PAR: O espírito de família não é tão latente à Amor Fúria. A Amor Fúria não nasceu com um espírito familiar, mas sim com um espírito de ser uma companhia e isso está bem explicito também no nosso cognome. A nossa ideia não é juntar as pessoas e criar laços familiares ou laços de amizade, mas sim que eles surjam de uma forma natural e que se proporcionem.

LF: Eu acho que na génese da Amor Fúria essa ideia de família poderia existir, mas fomo-nos apercebendo ao longo do tempo que nos tínhamos tornado profissionais, deixado de amadorismos e de achar que somos uma comunidade de artistas todos virados para o mesmo sítio e todos dispostos a fazer sacrifícios por um bem maior – cada um tem o seu ideal de bem maior, que às vezes é cultural e artístico e às vezes é económico. Por isso, também nos fomos adaptando às várias realidades e assumimos que não somos uma família.

PAR: Somos uma editora e uma companhia de discos naquela ideia clássica de companhia em que há uma estrutura que administra, gere e pensa. Existem os artistas que trabalham connosco [e] é para eles que nós trabalhamos. Somos suporte e somos uma plataforma. Percebemos rapidamente que se as coisas se tornassem familiares, a tendência era [a] poderem acabar mais rápido.

MF: Por causa das partilhas (Risos). A verdade é que esse espírito familiar, na medida em que se vai tornando possível, é bom. Só não pode afectar a nossa vontade de mostrarmo-nos mais profissionais. Até porque nós ambicionamos poder viver disto.

Em relação a essa ideia de editora, vocês mencionam o Andy Wahrol no site. Sentem-se inspirados pela Factory?

MF: O Andy Wahrol surge num contexto muito específico que tem a ver com a cultura pop. Quando surge o nome dele, também surgem os Beatles, o Manuel de Freitas, o Pedro Ayres de Magalhães, o Tito Paris ou a Amália. A ideia surge de uma vontade de gerar cultura pop portuguesa e específica de Portugal que é uma coisa que sentimos que nunca existiu verdadeiramente. E as tentativas que ao longo da história recente de Portugal se foram tentando criar, nunca ultrapassaram uma certa marginalidade e nunca se assumiram como uma coisa mais real e mais presente na vida das pessoas, no quotidiano como acontece no Brasil ou na Alemanha. É nesse sentido que vem a referência ao Andy, entre outros. Não temos nenhum fascínio especial por ele. É mais uma referência para poder situar as pessoas neste nosso objectivo. E em relação à Factory, a Factory em que nós nos inspiramos não é a do Andy Wahrol, é mais a de Manchester – como ideia de uma editora que pensa de forma regional com o objectivo global. E como ideia de uma editora em que existe igualdade e justiça entre a [própria] editora e os artistas.

PAR: E aquilo que também nos faz olhar para a Factory como um exemplo ou como uma influência, é o espírito punk e o “faça você mesmo” de uma forma mais livre, sem tantas restrições impostas por uma indústria que pode triturar artistas e bandas. É também nesse capítulo que se insere o nosso olhar para a Factory de Manchester.

Ainda este mês surgiu um novo projecto audiovisual “A Música portuguesa a gostar dela própria”. Consideram-se responsáveis, até certa medida, por esse tipo de iniciativas?

MF: Acho que não somos o único responsável – não temos essa presunção – mas acho que fazemos parte de um grupo de muita gente com o objectivo de dar uma alma ou uma vida nova e agitar um bocado a música que é feita em Portugal.

Em Dezembro falava com o Armando Teixeira dos Balla e nessa conversa surgiram a FlorCaveira e a Amor Fúria devido à colaboração entre o Armando e o Samuel Úria. Ele disse gostar muito dos projectos das editoras, mas acha que falta um pouco de electrónica.

MF: Salto!

PAR: Não é salto a pergunta… (risos)

MF: Salto e Verão Azul, mas mais os Salto.

LF: O Silas na FlorCaveira…

PAR: Sim, há espaço para electrónica. Se calhar ainda não surgiu com a força que devia, mas vai surgir. Por acaso é algo que sentimos também. Há uma banda do Porto, os Salto, uma banda com um registo mais electrónico. E há um objectivo futuro de editar mais electrónica – se ela aparecer. Não há nenhum preconceito, é mais uma forma de fazer canções e não a menosprezamos nem por nada.

MF: O nosso campeonato – pelo menos estes três que estão aqui – tem mais a ver com o rock. Se calhar o [do] Pedro um bocado menos.

PAR: Eu menos.

MF: A actividade musical do Pedro também é mais recente do que a do Luís e a minha. Estamos um bocadinho mais sensíveis a isso [ao rock] do que propriamente à electrónica. Quando vimos a evolução dos Salto, quando os tipos começaram com esta abordagem que têm agora, [pensámos] “temos que pegar neles e temos que fazer isto acontecer com força”. E é uma coisa electrónica e é muito boa.

Ao longo dos últimos três anos, também tem se escrito que a música portuguesa portuguesa atravessa um momento incrível. Voltando àquela questão: sentem-se um pouco responsáveis por esse tipo de coisas que se vão dizendo?

MF: A resposta é igual à outra, acho eu. Não temos a presunção de sermos os únicos responsáveis.

LF: Acho que nós como editora temos uma quota de responsabilidade e muito beneficio também. [Estão] coisas de qualidade e com menos qualidade a aparecer e a ter visibilidade. Tem vindo a haver muita atenção a esta nova onda, [esta nova] vaga de música cantada em português e acho que isso veio abrir caminho a qualquer banda de experimentar cantar em português. Acho que é uma coisa que anda lado a lado. Alguém repara que alguém anda a fazer qualquer coisa decente em português, prova-se que é possível, que não há que ter vergonha, e nascem outras bandas. E a coisa vai crescendo – há coisas de qualidade, pelo menos aos nossos olhos, e coisas sem qualidade nenhuma. Só o futuro fará com que elas vinguem ou não. Nós não só produzimos como consumimos música e [quanto à] questão da FlorCaveira – eu acho que [tudo] começou aí -, [nós decidimos:] “Precisamos fazer chegar isto a mais pessoas”. Lembro-me do Manel me estar a tentar convencer a ouvir coisas da FlorCaveira que eu não conseguia ouvir, mas [é o facto de] perceber que deveria haver um espaço em que mais pessoas pudessem decidir se aquilo é bom ou mau. E não é daqui a 50 anos alguém dizer: “Ah! olha-me estes malucos que faziam estas coisas”. Acho que o Myspace teve uma responsabilidade enorme nesse crescimento, porque qualquer banda passava a existir, mesmo que não tivesse editora.

PAR: [O Myspace] está mais mortinho agora. As pessoas passaram a consumir mais facilmente música feita em português. Houve também a facilidade de as pessoas que estavam a tentar fazer alguma coisa em português se juntarem – seja a Catadupa, o MAR, [ou] a Amor Fúria. [O facto de] trinta mil pessoas que estão a tentar fazer com que a sua música em português chegue a algum lado também se encontrarem e se irem potencializando umas às outras também ajudou. Completando esta questão de nos sentirmos responsáveis [pelo actual momento da música portuguesa], é exactamente como o Luís disse: sentimo-nos tão responsáveis como beneficiados com a atenção que estamos a ter, com a atenção de alguma imprensa que vem, obviamente, de um público que foi sendo criado e foi sendo fomentado com o nosso aparecimento. Sentimo-nos responsáveis pela parte de uma horta que é muito maior que nós ou que é cultivada. [Nós] fazemos parte dela e vamos também no sentido de [fazer] dar frutos mais tarde. De certa forma, olhando para trás, sentimos que havia esse espaço e essa abertura de voltar a colocar algumas pessoas a ouvir canções em português. Já tínhamos muitos êxitos e basta olhar para trás e ver os êxitos que existem cantados na nossa língua que todos nós sabemos e [que] são património pop para sempre. Apesar de ainda não ser uma coisa que seja vivida diariamente e ser uma coisa que com o tempo, principalmente com a passagem dos anos 90, terá sido encostada a uma mobília e foi associada a uma certa nostalgia ou uma memória que se mete num armário com um vidro.

LF: Relembro que nós somos também consumidores e que nós – e quando digo nós, refiro-me a todos aqueles que cantam em português -, de alguma maneira, fomos conquistando espaço nas salas de concertos ou de bares. Efectivamente também [muitas bandas] não interessavam, eram bandas que faziam covers e eram raros os artistas que iam tendo o seu espaço na programação das salas, mas, efectivamente, éramos nós os espectadores que enchiam essas salas e fomos criando alguma credibilidade às bandas. Por exemplo, se havia um concerto da FlorCaveira, era a Amor Fúria que estava lá a assistir, éramos nós que íamos potenciando e comprando os discos uns dos outros (Risos). E levávamos os nossos amigos.

Editar hoje com o selo de Amor Fúria pode ser uma vantagem logo à partida. Os artistas vêm ter convosco?

LF: Sim, recebemos todos os meses meia dúzia de solicitações para análise de trabalhos e infelizmente temos uma estrutura muito pequena e não os conseguimos albergar todos. Muitas vezes também saem fora do nosso âmbito e temos de recusar.

PAR: E há um critério editorial, um rumo editorial que, apesar de tudo, temos e devemos seguir e por isso também não queremos dispersar e [pretendemos] criar uma linguagem comum. Como se vê, o “Depósito de Inúteis” já é tão díspar [no que diz respeito] às bandas que alberga. Se fossemos dispersar mais, provavelmente perderíamos a força que temos e tornávamos uma coisa mais banal. É sempre um risco dizer isto.

LF: Há muita coisa que nós não íamos ajudar a fazer nada a não ser no selo [Amor Fúria] e isso também não nos interessa porque gostamos de construir as bandas, de as sonhar. É muito difícil para nós não querer interferir de alguma maneira – não como ditadores, mas sim…

MF: Como potenciadores, dínamos…

LF: Sim, exactamente. E às vezes aparecem-nos coisas completamente fechadas. Dizemos: “olhem, boa sorte, temos aqui uns contactos para tentarem a vossa sorte, mas nós não íamos ter grande pica” – e as coisas têm que nos dar pica, ainda não as vemos como um negócio e espero que nunca seja assim. Ou sentimos que a Amor Fúria pode ter um papel fundamental naquela banda ou…

PAR: E a banda acha que a Amor Fúria pode ter esse papel…

LF: Sem ser o selo. Por mais que ele valha – e vamos apercebendo-nos que ele vai tendo o seu valor – não pode ser isso a fazer-nos mexer.

O que têm de especial os bifes do Chiado?

MF: (Risos) Há bifes do Chiado óptimos,  ali em cima há o Snob – se bem que seja já no Príncipe Real -, também havia o D. Pedro V, mas infelizmente fechou – , há ali o Buenos Aires…

PAR: Gosto da Cervejaria Trindade.

MF: Há bifes óptimos aqui. A cena é que…

LF: E há muitos ingleses (Risos).

MF: Essa expressão surge numa canção d’Os Quais que vivem aqui no Chiado e que experimentam muito este quotidiano. E a letra dos Capitães [de Areia] é precisamente uma citação à canção d’Os Quais.

PAR: É um bocado tradição, que também faz parte deste aparecimento das editoras que temos vindo a falar, de se citarem umas às outras. Os Quais citam Os Pontos Negros, os Capitães de Areia citam Os Quais. No futuro irá alguém citar os Capitães de Areia sem sombra de dúvida.

MF: Se merecerem…

PAR: Se eles merecerem (risos).

Em relação ao catálogo que têm no site, aqueles objectos são exactamente o quê? Não estão à venda…

MF: Podes fazer uma proposta e nós depois analisaremos (Risos). São coisas que fazem parte da nossa história e que nós achamos que faz sentido mostrá-las. A Amor Fúria não é só discos. A Amor Fúria é pessoas, a Amor Fúria é momentos, bocados de história…

PAR: Lugares.

MF: Acho que [isso] revela esse lado de coisas a acontecer e de vida a acontecer, não são só discos que se mandam fazer em fábrica.

LF: São histórias, são objectos que nos vão caracterizando de alguma maneira, que nos vão marcando, que fazem sentido, que passam a ter um outro valor e que entram para dentro do catálogo.

MF: Às vezes também ajuda quando as bandas querem ter números de catálogos específicos (Risos).

Isso acontece?

MF: Acontece, por exemplo, Os Velhos curtiam primeiro ser o AF010, agora queriam ser o 20. E Os Golpes têm sido sempre acabado em sete também. Sete, dezassete…

Funciona como o futebol.

MF: (Risos) Exactamente.

LF: Em relação ao Catálogo, havia algum objecto que…

MF: Que gostasses de comprar? (Risos)

LF: Não, não. Não é isso. Há ali coisas giras. Acho que faz ali alguma falta o [acto de] contextualizar.

Porque é que estão lá apenas dois vídeos, por exemplo?

LF: Falha nossa.

MF: Porque faltam os outros todos.

LF: Às vezes são co-produções.

Sim, são da FlorCaveira.

PAR: Sim, tem a ver com isso. São telediscos que foram produzidos ou que foram ideias da Amor Fúria e que depois não têm concretização no disco. Achámos que fazia sentido darmos um número de catálogo que não estivesse associado a um disco. Faltam lá os outros telediscos que têm número de catálogo e que está associado a um disco.

LF: Ainda não entraram por falha nossa.

E o futuro?

MF: O futuro? O futuro começa agora, vamos agora para umas instalações novas muito giras [aqui no Chiado], na Rua Garret. Mas o futuro está já a acontecer e este ano, se tudo correr como tem corrido até agora, como temos andado a planear e trabalhar, vai ser um ano tão bom ou melhor que o ano passado. Coisas muito boas vão acontecer. Antes do Verão, no Verão, depois do Verão. Há o disco d’Os Velhos para sair, há o disco dos Salto para sair, há o disco dos Capitães [de Areia] para sair. Haverá um disco [meu] – se eu conseguir gravar aquela porcaria – para sair. Há também telediscos a fazer, muitos concertos, festas especiais, vai ser um ano em cheio, mais uma vez. E vem aí o João Botelho, pedimos-lhe para realizar o teledisco dos Feromona.

[Passa João Botelho]

MF: Olá João…

João Botelho: Bom dia.

MF: Nem se apercebeu de quem nós éramos (risos). Mas pronto, há-de ser um ano em cheio.

PAR: E o Depósito de Inúteis e a Amor Fúria… acho que o final do ano passado foi um bom ponto de charneira ou de virar de página da nossa história que está sempre em recomeço, está sempre reinventar-se. Em relação ao futuro, interessa-nos continuar a editar as bandas em que estamos a apostar e novas. Essencialmente [queremos] continuar a descobrir novos artistas e a poder apoiá-los dentro das nossas possibilidades.



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