“Amuleto” | Roberto Bolaño
É uma sorte ter um amuleto como Bolaño
Já vos aconteceu chegarem ao final de um filme ou de um livro e ficarem como que aturdidos, aprisionados numa sensação de queda no vazio que vos faz questionar se terão chegado lá, àquele lugar que o criador imaginou e escondeu nas entrelinhas? Pois bem, “Amuleto”, de Roberto Bolaño – edição Quetzal, série américas – é um desses livros abençoados pelo mistério da criação.
«Esta vai ser uma história de terror». É desta forma premonitória que Auxilio Lacouture, uruguaia de meia-idade, alta, magra e com um tique muito particular de tapar a boca para não se verem os dentes em falta, começa a narração de “Amuleto”. A partir do momento em que é impulsionada pela loucura a viajar e chega ao México, faz dele a sua primeira pátria. Trabalha como doméstica em casa de León Filipe e Pedro Garfias, dois dos grandes poetas de então e que, de certa forma, a conduzem a tornar-se, mais tarde, a rainha da poesia mexicana. Auxilio habitua-se a viver com pouco, alternando entre a dedicação universitária e a vida boémia, onde vai conhecendo toda uma geração de poetas que quer deitar abaixo a ditadura com o perfume da palavra.
Em 1968, enquanto a polícia ocupava pela violência a Faculdade de Filosofia e Letras da Cidade do México, Auxilio ficou escondida na casa-de-banho das mulheres. Durante os dias em que permanece fechada, como uma resistente coberta com o manto da invisibilidade, faz do pequeno espaço que ocupa um portal do tempo, recordando os anos passados no México e antevendo o tempo que está ainda para chegar, tecendo algumas profecias sentimentais e literárias. Como esta: «Vladimir Maiakovski voltará a estar na moda por volta do ano 2150. James Joyce reencarnará num menino chinês e, 2124. Thomas Mann converter-se-á num farmacêutico equatoriano em 2101.»
Na sua divagação pelo território das memórias, Auxilio recorda (ou antecipa?) o seu encontro com Arturo Belano, a promessa mais jovem de entre todas as jovens promessas, o único que já tinha escrito um romance; mau, por sinal, mas com pormenores suficientes para que Auxilio soubesse que estava ali um escritor genial, tornando-se sua amiga para a vida. Quando, em 1974, Arturo regressa ao México depois de ter ido fazer a revolução (ou morrer a tentar) ao Chile, era um outro, um desconhecido, pelo menos para uma nova geração de poetas que tinham tomado conta da palavra em solo mexicano. É então que somos apresentados a um estranho grupo de personagens: a poeta Lilian Serpas, que tinha sido amante – talvez a expressão one-night stand seja mais apropriada – de Che Guevara; o seu filho, Carlos Coffeen Serpas, um ser marcado pela tortura, cujos desenhos são vendidos pela mãe em cafés e tertúlias; a pintora catalã Remedios Varo; Guerrero, o rei dos homossexuais responsável pela criação de um verdadeiro reino de terror.
Neste livro, como em muitos outros de Bolaño, olhamos a sua obra como algo circular, sombras que se estendem de uns livros para outros: Arturo Belano é uma das personagens centrais de “Os Detectives Selvagens”, um incrível romance de Bolaño; e não falta também uma referência a “2666”, esse monólito literário que é parte épica da literatura: «…a Guerrero, àquela hora, parece-se sobretudo com um cemitério, mas não com um cemitério de 1974, nem com um cemitério de 1968, nem com um cemitério de 1975, mas com um cemitério de 2666, um cemitério esquecido sob uma pálpebra morta ou nascida morta, as aquosidades desapaixonadas de um olho que por querer esquecer uma coisa acabou por esquecer tudo.»
Com “Amuleto”, Robero Bolaño escreveu um romance habitado pela loucura, belo e comovente, que é também uma grande homenagem à literatura e ao poder que a palavra tem para mudar o mundo (ou em ajudar a mudá-lo). Um livro absolutamente obrigatório de um escritor que atingiu a imortalidade.
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