Ana Moura | “Casa Guilhermina”
E ao sétimo álbum, Ana Moura não quis descansar!
No início deste mês de Novembro, o mundo assistiu ao lançamento do novo trabalho de longa duração da cantora Ana Moura, “Casa Guilhermina”.
Muitos acorreram a dizer que a fadista que foi já não existe, mas desatentos se encontram se consideram que na nova casa da artista não se está ainda no território do fado e do destino.
“Casa Guilhermina” transpira fado no sentido em que este era um caminho que embora parecesse inesperado tinha, na realidade, muito do espírito que o fado de Ana Moura sempre respirou, sem nunca ter estado preso aos moldes mais tradicionais do estilo musical.
O inesperado é, sim, uma artista de renome internacional, que podia não sair da sua zona de (des)conforto e continuar no ritmo alucinante de lançar discos e fazer turnés pelo mundo inteiro, ter decidido seguir um caminho completamente diferente e, até, arriscado a carreira.
Certo é que a felicidade não habitava em Ana Moura, como a própria admitiu, e apesar de intensamente dedicada ao trabalho, percebeu que já não estava no sítio que lhe fazia bem.
Terminadas as ligações contratuais com a sua anterior editora, com a qual mantém ainda boas relações, Ana Moura edita agora aquele que é um dos melhores álbuns nacionais do ano e, possivelmente, dos últimos anos aqui neste cantinho muito conservador em termos musicais à beira-mar plantado.
Um cantinho que também não é muito meigo para com as mulheres, sobretudo as que ousam mostrar mais do que aquele cantinho de pele, especialmente se forem fadistas. É que a tradição não permite muitas liberdades, mas as tradições nos tempos que correm estão constantemente a ser reinventadas e ainda bem.
Ana Moura fez isso mesmo na sua “Casa Guilhermina”, baralhou tudo, remisturou, inspirou-se, chamou gente nova para trabalhar consigo, arriscou escrever letras suas, mostrou-se em toda a sua glória de mulher confiante do seu imenso talento e beleza – e como ela transpira tudo isto!
Este não é um álbum apenas de música, embora o seja de excelente música – este é um trabalho de reinvenção e audácia da figura de uma mulher portuguesa, normalmente discreta, que decidiu que queria mostrar mais, mostrar outras facetas suas, sem vergonhas nem tabus, sem dever nada a ninguém e sem esperar pela aprovação dos Velhos do Restelo.
O aspecto visual do álbum acompanha a audácia e quando saiu para o mundo o videoclip de «Agarra em Mim» ou «Arraial Triste», quem estava atento sabia que o que ali se mostrava não aparece todos os dias na música portuguesa protagonizada por mulheres.
Não é caso único, mas sente-se claramente o rasgão que visual e sonoramente “Casa Guilhermina” provocou na música nacional deste ano, sem, na realidade, se desviar, na sua essência, de muitos dos sons tradicionais e, até, de as suas letras continuarem na senda temática trágica do fado.
Ana Moura fez algo muito simples que, na chamada indústria da música, às vezes é complicado e arriscado: agarrou nas suas raízes e em todas as suas influências, misturou tudo com formas novas, disse adeus a quem a queria limitar, e fez o que realmente queria sem ter aquelas vozes irritantes a dizer o que é ou não possível.
Esta “Casa Guilhermina” é uma homenagem belíssima às raízes africanas da cantora, mas também às influências ribatejanas, ao corridinho, ao folclore minhoto e ao prório tradicionalíssimo fado (traçado de forma brilhante pelo Gaspar Varela, um furacão tremendo da guitarra portuguesa).
É como se todo o Portugal – e até o mundo – estivesse contido num só álbum, mas é também o local onde se encontra a Ana Moura mais completa, mais plena, mais ciente dos seus talentos, das suas capacidades e, essencialmente, do que quer para si.
Possivelmente, haverá um antes e um depois de “Casa Guilhermina” para a música nacional, onde se arrisca muito pouco e contar-se-á pelos dedos das mãos as bandas, cantores ou artistas que verdadeiramente arrisquem a maledicência do mercado, dos especialistas e do próprio público – é um mundo pequeno.
Ana Moura encontrou um novo público, sem dúvida, sendo prova disso o seu concerto recente no Festival da Avenida da Liberdade, o Super Bock em Stock. Talvez tenha mantido alguns dos seus fãs antigos ou, pelo menos, aqueles que tenham a mente mais aberta e que compreendam esta nova direcção na carreira da cantora.
Quando o tema “Vinte Vinte” viu a luz do dia no início de 2021, já se estava em território novo, embora esse tema não integre o álbum agora editado. A colaboração com o produtor Branko, ex- Buraka, e o cantor Conan Osíris, não podia ser mais inesperado, do ponto de vista do público.
O genial tema respirava a nova cena musical lisboeta, as influências da música do mundo, e misturava a profundidade fadista da voz de Ana Moura com a spoken word lunática de Osíris para dar origem a algo que ainda não tinha sido ouvido antes.
Estava ali um pouco da génese da “Casa Guilhermina”, que se disseminou para um outro tema, lançado ainda em 2021, chamado «Andorinhas» que, esse sim, viria a integrar o álbum. A colaboração com Branko já não se repetiu, mas Conan Osíris está presente no álbum, onde escreve e é um dos produtores, a par de Pedro da Linha, Pedro Mafama e João Bessa.
“Casa Guilhermina” é uma bomba cultural fantástica, respira música angolana, respira fado, respira as influências mouriscas na música portuguesa, abraça o Ribatejo, dança o corridinho sob um manto lânguido de kizomba ou semba, presta homenagem ao Prince sem vergonha do auto-tune (de que nem precisa) e canta com o Paulo Flores como se nada fosse.
Impossível descolar “Mázia” das orelhas, um sonho perfeito de ritmos africanos misturado com a terna história da família da cantora, que, ao mesmo tempo, liricamente nunca deixa de evocar o espírito do fado, numa mistura de penas que tanto são de liberdade como de nostalgia.
“Casa Guilhermina”, uma homenagem à avó da cantora, não se inibe de, no meio de um corridinho fadista, se deliciar tanto com uma cachupa como com uma feijoada, num piscar de olhos às raízes de ambos os lados, mas tendo o moderno cuidado de adiar o exercício para depois do ajuntamento familiar do fim de semana.
É este frescor, este desprendimento, esta liberdade, que fazem deste trabalho uma verdadeira delícia musical. E a cantora está tantas vezes presente para lá do canto, no fim das músicas, a chamar a Guilhermina, a falar com os seus companheiros de dança, traz uma Ana Moura muito real para o lado do público, ainda mais próxima.
Enquanto dança o fandango, a cantora veste-se de modernidade, mas canta o fado como dantes, juntando-lhe talvez mais uns pozinhos de sonoridades mouriscas descaradas. No clip de «Arraial Triste» é ela que dança o fandango com os pés em cima da mesa e está no centro do palco, ele é todo seu.
Ana Moura não esqueceu o fado, pois, do qual não consegue escapar mesmo que queira e, pelo meio da diversidade musical que é todo o álbum, pode ouvir-se, por exemplo, um pequeno interlúdio chamado «Minha Mãe», daqueles temas que parecem arrancados das paredes de uma casa de fados à antiga.
O tema «Jacarandá», que imediatamente se lhe segue, é o tal de homenagem a Prince, cantor com quem teve uma relação próxima de amizade conhecida. E é uma kizomba linda, cantada ao volante de um descapotável, arejada, cheia de auto-tune que noutra voz ou noutra música seria só mais uma pirosice, mas aqui é a Ana Moura, com aquele potencial vocal bombástico, a escolher fazer isto porque pode.
Uma das estrelas mais brilhantes do álbum, «Agarra em Mim», segue semelhantes linhas, e já valeu a Ana Moura a comparação visual com Ana Malhoa. Pondo de parte que, na realidade, essa comparação é um enorme elogio e o reforço de uma irmandade musical feminina que não deve ser corrompida, o tema é brilhante em todas as vertentes.
Visualmente brilhante porque está na linha de frente da grande onda de música pop latina, bebendo das raízes africanas que estão na base de muitas tradições musicais norte-americanas e das da música dos países africanos de expressão portuguesa, respirando fumos de Rosalìa e até mesmo da própria Ana Malhoa – estão todas visualmente próximas.
Ana Moura, contudo, traz consigo, a sua personalidade electrizante, misteriosa, e a façanha de mostrar que uma mulher, praticamente em fim de gravidez, pode mostrar-se em toda a sua sensualidade num videoclip em Portugal – terá, talvez, paralelos em Blaya e pouco mais.
«Agarra em Mim» inspira-se, apesar de toda a sua modernidade, naquela longa linha latina trágica de faca e alguidar, de amor desgarrado, trágico, em que ainda é possível entrever resquícios de machismo à antiga na utilização das vestes de forcado pelo Pedro Mafama no videoclip.
É uma encenação, claro, porque esse não é o espírito que subjaz ao tema, como se pode comprovar no final do clip, em que Mafama, de facto, agarra em Ana Moura, em momentos de intimidade entre ambos e a sua filha, na altura recém-nascida.
Este “Casa Guilhermina”, curiosamente, fecha com dois fados belíssimos, um primeiro uma reinterpretação formal de «Estranha Forma de Vida», refrescado com sonoridades modernas, e um segundo chamado «Nossa Senhora das Dores», apontando ao fado canção e aquela que foi uma das faíscas que impulsionaram Ana Moura a “mudar de vida”, a la Variações.
“Casa Guilhermina” não cabe em escalas nem em conceitos, é livre, é Ana Moura, é mulher, são todas as mulheres que a compõem, é novo, é fresco, e fazia tanta falta no horizonte musical nacional como a água no deserto.
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