André Fernandes – Entrevista

André Fernandes

Em entrevista à Rua de Baixo, o guitarrista André Fernandes falou-nos do seu percurso musical, num grande contributo à música e à forma de nela se estar

Um concerto do Pat Metheny foi determinante para o seu percurso enquanto músico. No entanto, foi no rock que se iniciou na guitarra e é este o estilo que ouve mais regularmente, nunca evitando a sua influência no trabalho que desenvolve.

Fez o curso na Escola de Jazz do Hot Clube e estudou na Berklee College of Music em Boston, onde aprendeu que a única forma de ganhar um espaço na música é integrar aquilo que somos naquilo que fazemos. Tem como única premissa na música tocar sempre como se estivesse na melhor sala do mundo com o seu músico favorito.

Dá aulas na Escola Superior de Música de Lisboa e na Lusíada. Fundou a editora Tone of a Pitch (TOAP), que recentemente se associou à Orquestra Jazz de Matosinhos. Tocou com grandes nomes da cena do jazz nacional e internacional, como Maria João, Bernardo Sassetti, Lee Konitz ou Tomaz Stanko. O “Motor”, o seu último disco enquanto líder, conta com uma das últimas participações de Sassetti.

A tua relação com a música nasceu em casa, certo?

Sim, através do meu pai. O meu irmão, mais velho, ouvia o pop e o rock da altura. O meu pai, por outro lado, tocava piano em casa, tinha uma colecção enorme de discos de jazz e música brasileira que passava a vida a ouvir. Levava-me ao Cascais Jazz, a concertos e eu não ligava muito nem sentia uma grande afinidade pela música. Depois, pelos catorze anos, comecei a tocar guitarra, rock e as coisas que o meu irmão ouvia. Mas numa daquelas idas a concertos com o meu pai, houve um que me deu um click: um concerto do Pat Metheny.

Quais eram as tuas referências musicais nesse tempo?

No início era fascinado pelos virtuosos da guitarra: o Satriani, o Steve Vai e assim. Depois comecei a ouvir guitarristas mais antigos, influenciado por um amigo, o Tiago Maia, que ouvia coisas anteriores, dos Zeppelin e do Hendrix. É natural, quando se começa a tocar um instrumento, ficar fixado naquilo que nos impressiona, seja mais ou menos profundo. Do ponto de vista instrumental aquilo impressionava-me, eram coisas que eu não conseguia fazer. Depois isso passou e não oiço nada que se assemelhe. Mas continuo a adorar rock. O sPiLL, um grupo cujo primeiro disco tem muitas influências da electrónica, deu recentemente uma volta e estou a considerar mudar o nome do grupo. Agora é um grupo de rock mesmo! Gravei o primeiro disco do sPiLL em 2005. Na altura ouvia muito coisas vindas da electrónica e fiz o sPiLL um bocado para incorporar essa tralha toda. Tocámos durante imenso tempo e acabou quando eu deixei de ter tempo. Para aí há um ano atrás decidi recomeçar. Como tinha muita coisa escrita de rock, comecei a experimentar usar esse material na nova formação do sPiLL.

No entanto, um concerto do Pat Metheny acabou por ser determinante para o teu percurso enquanto músico. Que ouviste ou sentiste que te convencesse tanto?

De repente, fiquei fascinado e ouvi aquilo de outra maneira… Talvez por ser ao vivo e perceber como é que as coisas funcionavam. Peguei naqueles discos a seguir, e em coisas mais antigas, e gastei-os até ao fim. Depois o objectivo foi: “tenho de perceber como é que isto se faz, aprender mais disto, e vou entrar para o Hot Clube”. Tinha para aí dezasseis anos. Estive um tempo a estudar, saquei umas coisas do Wes Montgomery para a audição e pronto, entrei e nunca mais larguei. Quando regressei, tudo aconteceu na área do jazz e raramente tive oportunidade de fazer coisas de rock… Até agora. Mas, na verdade, é o que eu ouço mais. Mais do que jazz. Mas há uma altura da nossa vida, a adolescência, em que a música nos marca de uma forma diferente. Depois, a pessoa ou aceita isso e incorpora-o no que faz, ou renega-o. Eu nunca tentei evitar influências do rock no que faço porque gosto mesmo daquilo!

“Não sou apologista da ideia de que alguém para tocar bem ou fazer boa música tenha que passar por escolas”

Inicias os teus estudos na Escola de Jazz do Hot Clube. Fala-me da importância que teve, das experiências e das pessoas que mais te marcaram

Foi tudo muito importante para mim na altura. Pela primeira vez estava rodeado de pessoas da minha idade entusiasmadas em estudar aquela música e foi um estímulo enorme! A nível dos colegas, pois os que permaneceram mais próximos, como o Nuno Ferreira e o Nelson Cascais, são relações que mantenho até hoje, musical e pessoalmente. A nível académico foi o início de tudo. Comecei a perceber a mecânica das coisas e a conhecer música de uma forma mais formal. E também por alguns professores. Principalmente o Mário Delgado, meu professor no segundo de dois anos que estive no Hot… até ao dia em que ele me disse que não me queria dar mais aulas. (risos) E nesse dia convidei-o: “então vamos tocar”!

Disse-te que não te queria dar mais aulas?

Na altura, ele deve ter assumido que já não me estava a ajudar muito. Ou foi uma forma de tentar que eu seguisse caminho para uma coisa que me estimulasse mais. E depois aceitou tocar comigo! Ele era um músico muito estabelecido e foi uma experiência incrível. Entre acabar o Hot e ir para Boston formei esse grupo com o ele, o Pedro Gonçalves e o Bruno Pedroso, e tocámos durante um ano. E o Mário foi importante também mais tarde, quando regressei de Boston. E até hoje! Há uns meses atrás roubaram-me a guitarra e ele emprestou-me a dele. Salvou-me a vida mais uma vez. Já tocava com aquela guitarra há dezoito anos! Era uma Ibanez das antigas, de 1980. Não era um instrumento muito valioso, mas fisicamente era quase uma extensão do meu corpo. Uma perda irreparável! (risos)

Quando decidiste que querias ir para a Berklee College of Music em Boston?

Fui como finalista a Israel representar o Hot no encontro mundial da IASJ (International Association of Schools of Jazz) e fui apanhado na teia de um professor de guitarra da Berklee, o Jon Damian, com quem acabei por estudar lá, e que foi professor do Frisell e do Rosenwinkel. Era um tipo muito interessante, com um entusiasmo pela música incrível. Passou a semana a tentar convencer-me a ir para a escola. E na altura precisava de decidir o que ia fazer a seguir porque cá não havia outras opções.

Consideras que a passagem pelo Hot e pela Berklee foram fundamentais para a tua formação e percurso musical?

Não sou apologista da ideia de que alguém para tocar bem ou fazer boa música tenha que passar por escolas, e há muitos exemplos disso. Até por cá há pessoas que nunca tiveram um treino formal na área do jazz e que são músicos incríveis. Por exemplo, o Mário Laginha ou o Bernardo Sassetti. No meu caso, porque fiz esse percurso, foi-me muito útil. O Hot deu-me as bases para poder continuar a estudar. A Berklee também foi muito boa pelas relações pessoais e pelo que se passava extra aulas. Todos os dias, depois das aulas, os alunos da escola ficavam até às quatro da manhã a tocar. Havia jams, pessoal que escrevia música e procurava alguém que tocasse este ou aquele instrumento, e depois juntavam-se. Durante dois anos estive constantemente a tocar, a ser exposto a música totalmente diferente, mais tradicional ou mais experimental. E aquilo que me marcou mais e me direccionou de uma forma mais específica, foi essa intensidade e dedicação que havia numa escola. E só guitarristas havia novecentos!

Antes do regresso a Lisboa foste para Nova Iorque uns tempos

Todos os músicos de jazz têm aquela ideia de que Nova Iorque é o sítio onde tens que ir ou estar, onde a coisa é mais competitiva e a sério. E é verdade. Há um nível muito alto e em cada esquina tropeças em músicos incríveis. Eu na altura tinha duas hipóteses: fazer o último semestre para acabar o curso ou gastar o dinheiro das bolsas que recebi e ir ver como era a coisa em Nova Iorque. Optei por largar a escola e foi muito bom para mim. Pelos músicos que acabei por conhecer, alguns deles com quem depois vim a tocar, mas principalmente pela experiência de estar lá, ver como é que aquilo funciona e ouvir músicos espectaculares todos os dias, a tocar em bares miseráveis, a tocar bem e ao mesmo nível como se estivessem no Carnegie Hall.

Tocar com o Konitz é tocar com a história do jazz. É como tocar com o Parker, com o Miles

Tocaste com grandes nomes da cena do jazz nacional e internacional: Maria João, Bernardo Sassetti, Lee Konitz ou Tomaz Stanko. Que significou para ti teres tocado com eles?

Tocar com grupos que tenham um nível e uma personalidade musicais fortes é uma experiência que te marca e te torna mais sólido. Porque tens de tocar “àquele nível”. Com o Konitz ou o Stanko é um pouco diferente porque aí já não é só o nível ou aquela personalidade musical, mas toda a história que acarreta. Tocar com o Konitz é tocar com a história do jazz. É como tocar com o Parker, o Miles, até ao Frisell… Com o Konitz fiz muitas coisas durante muito tempo. Começou com a Orquestra de Jazz de Matosinhos (OJM), que o convidou para fazer um programa de música arranjada pelo Ohad Talmor. Ele tinha acabado de editar um disco em noneto e o Ben Monder, o guitarrista, não podia fazer uma das tournées europeias. Na altura estava a tocar com a OJM e ele convidou-me para me juntar ao grupo. Durante dois anos, fazia tours com o noneto dele e, pontualmente, havia concertos por cá com a OJM e com ele. E isso foi muito bom, tanto pelo facto de estar a tocar com o Konitz, como do ponto de vista profissional. A par com a Maria João, foi a minha primeira experiência de tours internacionais.

E hoje em dia, quais são as tuas referências e influências musicais?

Há coisas que oiço desde que comecei a ouvir jazz, como o Bill Evans, o trio do Keith Jarrett e também o quarteto do Jarrett dos anos 70. Há tipos de quem eu gosto imenso e que sigo com alguma curiosidade, como o Craig Taborn. Não sou fã de nenhum músico em específico e, como disse há pouco, oiço mais rock. No rock gosto muito do Jack White, dos White Stripes. Sou fã do Josh Homme, dos Queens of the Stone Age, que tem um bom grupo de rock com o baixista dos Zeppelin, o John Paul Jones, e o Dave Grohl na bateria. Gosto muito da PJ Harvey… Gosto das coisas mais cruas, de pessoal que toca rock mais directo, sem grande tipo de produção. Desses sou fã mesmo.

Na guitarra, uns tipos incontornáveis para mim são o Hendrix, o Metheny, o Scofield, o Frisell. E hoje em dia há pessoal muito interessante. O Ben Monder, o tipo que tocava com o Konitz. Adoro os discos do Jakob Bro, um gajo dinamarquês pouco conhecido. Nem é tanto uma cena guitarrística, que aquilo é tudo muito simples e minimal, mas o tipo faz aquilo muito bem. Gosto muito do David Torn, mais experimental.

Só de música é composto o teu trabalho, ou vais beber a outras fontes?

A música é obviamente aquilo que eu considero ser o que faço. Mas tenho outras actividades. Gosto imenso de fazer de produção, mistura e gravação. Estar constantemente a gravar outros músicos, a ver como é que o pessoal trabalha e encara a gravação de um disco, é uma coisa que me deu referências para eu próprio me definir enquanto músico. E dou aulas na Escola Superior de Música de Lisboa e na Lusíada. Comecei, através do Hot, num curso de jazz que havia no Funchal, e, desde há três anos, estou nestas escolas. Dou aulas de guitarra e de grupo.

E os miúdos estão bem preparados?

Estão. Se se comparar com a minha geração, a diferença é abismal. No contexto das universidades, que é bastante exigente à entrada, o pessoal já tem alguma bagagem. Isso permite que consigas levar a coisa mais longe com eles. Acima de tudo, há uma quantidade de malta nova com capacidade técnica e que sabe de música a potes. Quanto à parte artística e à possibilidade de virem a fazer alguma coisa que faça a diferença, é uma incógnita. Como disse há pouco, a parte académica não faz de ninguém um bom músico, faz um músico competente, no máximo. Ser um bom músico vai muito para além da competência. Há todo o lado da criatividade, de conseguir integrar aquilo que tu és naquilo que fazes.

Se tivesses de levar três CD’s para a “ilha deserta”, quais escolherias?

Acho que… provavelmente se fosse amanhã dizia outros… o “Never Mind” dos Nirvana, os quartetos de corda do Bartók do Emerson String Quartet e, se calhar, o primeiro disco em trio do Bill Evans, que é um disco que eu adoro, com o Paul Motian e o Scott La Faro. São três coisas completamente diferentes, não corria riscos de me entediar totalmente.

Escreves mais ou improvisas menos?

Hoje em dia há duas correntes. Há aquele lado em que os músicos tocam de uma forma mais convencional – o que é muito relativo -, mas que usam formas pré-determinadas sobre as quais improvisam, e que muitas vezes acham que quem toca de forma completamente improvisada não tem tanto valor. E vice-versa: há malta que toca de forma totalmente improvisada e acha que quem usa qualquer tipo de formalismo está condicionado pelos academismos musicais. Acho que ambos estão redondamente errados. Há espaço para as duas coisas. Quando se improvisa sobre música previamente escrita, pode-se ser tão livre como se não se tiver nenhuma estrutura de acordes e se criar música a partir do nada. O facto de estares a tocar livremente não justifica tudo aquilo que fazes. A música pode ser muito má, pode não acontecer nada e não haver interacção entre os músicos, e não definir nada que diga alguma coisa às pessoas. Pode ter só energia. Tal como um músico que toca sobre acordes e uma estrutura super sofisticada: pode fazer coisas extraordinárias ou ser a coisa mais chata do mundo. E o facto de escreveres música não é necessariamente algo que te faz improvisar menos. Faz-te improvisar sobre.

“O facto de estares a tocar livremente não justifica tudo aquilo que fazes”

Qual é o teu conceito de improvisação?

Não há um conceito. Acho que o grande objectivo de qualquer músico, mesmo que tenha um percurso formal e tenha que passar muito tempo a racionalizar, a decifrar e a dominar coisas no seu instrumento, é dar a volta toda e regressar quase à forma como tocava inicialmente. Acho que o processo é encheres-te de informação de uma forma consistente até ao ponto em que já não pensas nela. Claro que tudo o que sabes vai ajudar, ou não, ao resultado final. Mas o motor que faz com que aquilo saia tem de ser instintivo, auditivo e natural.

Tenho a sensação de seres um músico que tenta alcançar a perfeição em tudo o que faz, pela forma como geres a tua carreira, aproveitando todos os momentos e espaços. É assim?

Concordo e percebo, sou um bocado “trabalhólico”. A pior coisa que me pode acontecer é ir de férias. Mas é porque quero mesmo e tenho esse instinto. Surgem-me sempre ideias de escrever isto ou aquilo, de experimentar e descobrir coisas novas no instrumento, e isso é que me dá gozo. Agora, quando faço um concerto ou um disco, isso vem um bocadinho daquelas lições que tive na Berklee. Ver aqueles músicos que para mim eram referências, principalmente em Nova Iorque, em contextos que poderiam ser mais desleixados no concerto porque estão três pessoas no público, e vê-las a tocar ao mesmo nível que eu oiço nos discos, abriu-me muito os olhos. Quando faço alguma coisa tento fazer o melhor que consigo. Por pior que seja o concerto, a tocar com músicos que não goste muito ou que ache que possam não tocar muito bem, vou tentar tocar da mesma maneira que tocaria se estivesse a tocar na melhor sala do mundo com o meu músico favorito. Às vezes o resultado não é aquilo que eu queria mas que tento, tento.

Sobre o concerto que deste no Hot, onde tocaste o “Motor” e que dedicaste ao Sassetti, escrevi na altura que actuaria essa noite uma “constelação de estrelas”. Que relação existe entre esta constelação e o nome deste teu último trabalho?

Como toco muito com o Demian e o Marcos, e tinha acesso a tocar com a Susana e o Zé Pedro, e com o Sassetti em Lisboa, a música foi crescendo e tive muito tempo para amadurecer aquilo que eu queria ouvir. Quando me reencontrava com eles já podia voltar ao tema com uma ideia mais específica do que gostava que acontecesse a nível de som, direcção, energia, o que fez com que ficasse mesmo contente com o resultado final. Lembro-me de dizer ao Demian e ao Marcos que a minha ideia para este disco era que cada tema tivesse uma personalidade suficientemente forte para ter uma história, que uma pessoa pudesse dizer: “este é o tema em que acontece aquilo, há este motivo, esta cor, esta energia ou esta forma de tocar”. Começaram-se a criar laços de equipa entre todos, fazíamos um concerto aqui ou ali, e a imagem que eu tinha sempre era que aquilo era tipo um motor. Começávamos a tocar e todos estavam com a energia toda e super focados. E o nome vem dessa sensação. Aquela combinação específica tinha esse drive. E tinha muito a ver com o Bernardo, que era um tipo que punha uma energia visceral naquilo que tocava e emanava essa energia para o resto do grupo. Estavas a tocar e, de repente, ele tocava coisas que te espicaçavam, levavas ali um encontrão de qualquer coisa que ele fazia e que te fazia levar aquilo para outro nível. Na altura em que gravámos, tinha planeado dois dias de gravação e gravámos oito dos dez temas no primeiro dia. E só não gravámos o disco todo porque o Marcos estava exausto e quase a cair para o lado. Não fizemos mais do que dois takes para cada tema e muitos fizemos num take só. Gravámos uma vez e é o que está no disco.

O álbum “Motor” conta com uma das últimas participações de Bernardo Sassetti. Quem era e como era o Bernardo Sassetti?

Para mim, o Bernardo era um amigo. Nos quatro ou cinco anos em que eu estive a tocar com o Bernardo esporadicamente vivemos muitas coisas juntos. Ele vinha muito aqui gravar coisas para filmes, bandas sonoras, e passámos horas juntos. A nível pessoal, cada vez que estavas ao pé dele voltavas a ver o lado positivo daquilo que podia parecer menos positivo. Era um tipo com um sentido de humor e uma energia incríveis. Um sentido de humor muito rápido. Podia estar em silêncio durante dez minutos e de repente saía-se com a coisa mais disparatada do mundo que fazia toda a gente rir. Depois, musicalmente, era um bocado aquilo que estava a dizer sobre quando tocava neste grupo com ele. É fácil os músicos perderem o entusiasmo quase infantil pela música. Tens concertos todos os dias, a música é a tua rotina e às vezes há um perigo de, de repente, tocares música de uma forma um bocado automática. E o Bernardo era o oposto disso. Cada vez que tocava estava a duzentos por cento e intensamente a tentar fazer com que qualquer coisa acontecesse. E nesse sentido era uma lição.

“Cada vez que tocava [o Bernardo Sassetti] estava a duzentos por cento e intensamente a tentar fazer com que qualquer coisa acontecesse”

Em que projectos estás envolvido actualmente?

Como leader tenho o Motor, agora com o Oscar Graça. Os Supertrouper é outra formação com quem gravei há uns meses um disco, com o Mário Delgado, o Iago Fernandez, um baterista espanhol, o Nelson Cascais e o DJ Nery. Costumava ser o DJ Ride, mas quando gravámos o disco o Ride não podia. Esse disco há-de sair este ano. E depois, o sPiLL.

Como sideman, tenho coisas esporádicas. Toco no grupo do Nelson Cascais, quando ele está por aí. Gravei um disco novo com o quinteto do Perico Sambeat. Toco com o João Lencastre. Depois vou fazendo trabalho de sideman quando me chamam e com a OJM quando há reportório.

Como é tocar numa orquestra como é o caso da OJM?

É incrível! Houve um período em que todo o repertório tinha guitarra. Portanto, acabei por estar quase sempre a tocar com eles, como se fizesse parte da orquestra. Hoje em dia eles têm um repertório próprio que não tem guitarra. Mas é uma experiência muito gratificante porque é completamente diferente do que eu faço geralmente, que é tocar em grupos pequenos. Ali faço parte de uma orquestra e estou a ler a minha parte, faço parte de um todo, como se fosse parte de um naipe de sopros. É uma experiência que me obriga a integrar, a fazer com que o meu som seja compatível com tudo o resto que se está a passar. Isso para mim, como músico, é super interessante. Toquei com outras orquestras, mas com a OJM há o orgulho de ser uma orquestra portuguesa que tem aquele nível. Acho que eles têm feito um trabalho incrível ao longo dos anos, são uns tipos incansáveis… Têm sido muito inteligentes na procura de recursos e formas de fazer com que as coisas aconteçam, num País onde isso é muito difícil. Basta olhar para o currículo inacreditável da orquestra nos últimos seis anos. Tanto em termos de regularidade como em termos de qualidade do reportório e dos convidados, está ao nível de qualquer orquestra europeia de topo. E soa a isso, e é muito respeitada e conhecida, se calhar mais lá fora do que cá. Tal como as orquestras nacionais de clássico que são subsidiadas pelo Estado, a OJM é a nossa orquestra nacional de jazz e devia ter esse suporte.

E uma cena de improvisação livre ou projectos mais experimentais? Eram compatíveis com a tua forma de pensar e estar na música?

Completamente! Tenho um duo com o João Lencastre que é só guitarra e bateria. A música é totalmente improvisada. Basicamente o João tem a bateria, eu tenho a guitarra, e uso mais efeitos e loops do que noutro contexto. Já experimentei muitas coisas, cheguei a ter microfones, usar a voz com som ligado a samplers e a efeitos. Encontramo-nos no sítio do concerto, começamos a tocar e é o que sai. Às vezes faz-se a ligação directa entre as músicas improvisada e abstracta, e não é necessariamente o caso. Muitas vezes com o João acabamos por tocar coisas que podiam ser quase um tema que tivesse sido escrito. Mas podemos estar meia hora a improvisar com sons e coisas completamente abstractas.

Em 2002 fundaste a editora Tone of a Pitch [TOAP]. Passados 10 anos, que balanço fazes?

A TOAP surgiu pela necessidade de os músicos da minha geração editarem um disco. Na altura não havia nenhuma editora… Havia a Clean Feed, que tinha para aí um ano.

Foi uma alternativa?

Não premeditada. Aliás, quando gravei o “Osso”, o Nelson Cascais tinha, na mesma altura, gravado o primeiro disco dele, o “Ciclope”, e o Nuno Ferreira pouco tempo depois queria editar o primeiro disco dele com a Companhia dos Sons. Éramos os três muito próximos, tínhamos música para tocar e queríamos pôr os discos cá fora. Cheguei a falar com o Pedro Costa da Clean Feed, mas o Pedro na altura só queria editar discos de jazz experimental e free jazz, uma coisa que ele assumiu desde o início, e o tipo de música que nós fazíamos não lhe interessava. Não tinhas alternativa. As editoras grandes eram para esquecer, fazer isso para uma editora de fora era inglório, não fazia muito sentido. E era uma situação que se iria perpetuar.

Então, propus ao Nelson Cascais abrir uma editora para este tipo de cenas para a malta de cá. Havia muitos músicos com projectos consistentes a rodar e que tocavam imenso e depois desapareciam do mapa porque os discos não ficavam gravados. Houve imensa música que ficou perdida no tempo porque não foi registada. E a ideia foi arranjar uma forma de podermos pôr os discos cá fora, sem qualquer objectivo comercial. Entretanto, o Nelson afastou-se porque a editora dava muito trabalho e nada em troca. Excepto saberes que estavas a fazer uma coisa que é importante… E era muito difícil, ainda hoje é. Claro que o catálogo tornou-se mais consistente, começou a definir-se uma certa personalidade e um nível médio de qualidade. E também começou a ser mais exigente em relação àquilo que edita, sendo que a premissa é sempre a mesma: dar oportunidade a projectos de cá, activos e com qualidade musical nesta área. Acho que se não fosse a TOAP, nos últimos dez anos quase nenhum de nós, e destes músicos que acabámos por editar, teria tido os discos editados.

“Não há nenhum País com um festival de jazz que não tenha uma grande percentagem de músicos locais. Só cá”

Recentemente a TOAP e a OJM associaram-se

Cheguei a um ponto em que tinha a TOAP às costas nos últimos anos. Sou músico e dou aulas, e era relativamente frustrante querer empenhar-me mais e procurar coisas que melhorassem as infraestruturas da editora, que permitissem que os discos fossem mais divulgados, dar melhores condições aos músicos. Não tinha tempo, nem vocação para isso. Entretanto, em conversa com o Pedro Guedes, ele disse-me que a OJM estava a pensar em fundar uma editora para os projectos da orquestra, mas que seria absurdo abrir outra editora num País tão pequeno quando havia já uma estrutura montada, com um nome relativamente estabelecido e cuja linha estética tinha muito a ver com aquilo que eles fazem. Portanto, tornou-se mais lógico haver uma associação com a TOAP, que funcionaria como plataforma de lançamento para aquilo que eles queriam. Acabou por se vender parte da TOAP à OJM. Eles gerem a parte logística da coisa e eu fico com a parte artística.

Sendo Portugal um país pequeno, o jazz e músicas afins um terreno limitado, como avalias o papel das editoras, do ensino, dos festivais, etc. Há mercado para tanto?

Portugal é minúsculo e um País onde a quantidade de festivais de jazz é inacreditavelmente grande. E o número de músicos portugueses que tocam nesses festivais é muito pequeno, o que é uma coisa estranha. Não há nenhum País com um festival de jazz que não tenha uma grande percentagem de músicos locais. Só cá. Depois, cada vez mais saem das escolas músicos competentes e não há espaço para toda a gente. Não sei o que é que vai acontecer. Mas há uma coisa que acho inevitável, e que já é normal na maior parte dos Países europeus: uma maior facilidade de internacionalização dos músicos de cá. Fazem falta agentes, representantes dos músicos a nível nacional e que ponham um músico português a tocar num festival em Londres, Roma ou Madrid. Quando isso mudar talvez as coisas ganhem um equilíbrio maior, porque os músicos não ficam tão limitados a tocar só em Portugal. Espero eu!



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