O regresso dos Arcade Fire

Arcade Fire @ Campo Pequeno (23.04.2018)

A memorável estreia em nome próprio dos Arcade Fire em Portugal, treze anos depois do primeiro concerto.

Dia de calor em Lisboa. Têm sido raros este ano. Talvez por isso às 19h40 a sala ainda se encontre despida. As grades que circundam o palco no centro da arena estão cheias. Apenas nos cantos, onde a visibilidade poderá ser mais reduzida, não há ninguém (ainda).

Passaram quase treze anos desde que os Arcade Fire se estrearam em Portugal, num Paredes de Coura. Chegou finalmente a altura de os ter em nome próprio, numa altura em que promovem o mais recente, e talvez menos consensual, “Everything Now”.

Suspensas no tecto, de cada lado, há duas bolas de espelhos gigantes que nos remetem de imediato para os dois álbuns mais recentes onde o disco é uma referência mais do que assumida. Mas os Arcade Fire são muito mais do que os seus dois últimos álbuns, e ainda bem que assim é.

O Preservation Hall foi criado em 1961, em Nova Orleães, para guardar e preservar o jazz tradicional daquela cidade do sul dos Estados Unidos da América, o dixieland. A Preservation Hall Jazz Band é a banda desse espaço que, às 20h em ponto, subiu ao palco dum Campo Pequeno com o topo aberto. Os elementos sobem ao palco, um a um e juntam o seu instrumento aos restantes. Estivesse mais humidade e isto podia ser o French Quarter de Nova Orleães. É contagiante. Há sempre um despique. Ora é o trompete com o saxofone, ora é este último com a bateria. Por trás, o violoncelo marca o passo, sempre rápido, nunca lento. Uma escolha surpreendente para banda de abertura mas que se revelou muito acertada, não só pela forma como cativou o público mas também pelo que deu, mais tarde, para tornar a note ainda mais memorável. E eis que após três quartos de hora de concerto, deixam o palco com uma surpreendente mas merecidíssima ovação.

Enquanto se espera, vemos um ringue a ganhar forma e eis que, às 21h15, ao som de «A Fifth of Beethoven» de Walter Murphy, os Arcade Fire surgem, apresentados, em português e como se de um combate de boxe se tratasse. E toca a campainha que dá início ao primeiro de vinte-e-dois assaltos. «Everything Now» canção homónima do álbum é a primeira. A recepção é apoteótica, o som nem por isso e foi o único factor que nunca esteve ao nível daquilo que a banda deu em palco e por isso mesmo não vale a pena falar mais sobre o assunto porque iria estar a repetir-me simplesmente. Segue-se «Rebellion (Lies)». A primeira de várias visitas a “Funeral”. Parece que estamos em 2004. Intensa, tremenda e com a banda tocar com um energia e entrega incríveis e William Butler a subir a uma das estruturas para tocar tambor.

«Here Comes the Night Time» é a primeira incursão por “Reflektor”, num registo que se revelou frenético e que, verdade seja dita, se manteve constante, até ao final do concerto.. «Haiti» dá-nos o primeiro vislumbre da magnífica e sublime performer que é Régine Chassagne (para além da fantástica instrumentista que também é). Por esta altura as cordas do ringue são retiradas. Não faz sentido estarem ali, há muito que o combate se estendeu a todo o recinto.

«No Cars Go» contém em si uma carga emocional como poucas canções têm. Vai sempre até ao osso. Aquele crescendo final foi, é e sempre será capaz de levantar e encher o peito de qualquer. Transcendente.

«Electric Blue» continua a dar-nos Régine no seu mundo. Quando ela canta e dança parece que nada mais importa. Permanecemos com um pé e meio nos anos 80 com «Put Your Money On Me», do mais recente “Everything Now”, com Win Butler sem medo de usar o seu falsete. É por demais evidente que a banda canadiana acusou as críticas menos positivas em torno do último álbum e esta digressão foi maneira encontrada de encarar os críticos olhos nos olhos e mostrar-lhes que continuam uma banda única em palco.

«It’s Never Over (Oh Orpheus)», trás Régine para uma plataforma, numa das bancadas, com um casado repleto de finas fitas brilhantes. Ela canta, ela dança, ela faz-nos sorrir.

«Neighborhood #4 (7 Kettles)», «Neighborhood #2 (Laika)» e «Neighborhood #1 (Tunnels)» levam-nos a passear pelo bairro, a que ainda iríamos voltar mais uma vez, lá mais para a frente. Há canções pelas quais o tempo passa e que continuam sempre a ser grandes canções. Poder escutá-las ao vivo, ao longo dos anos, em palcos e contextos diferentes, é um privilégio.

Eis que chegamos aos subúrbios. “The Suburbs” é a prova real da capacidade que os Arcade Fire têm de se transfigurarem sem subverterem a sua matriz central, a sua identidade. «Ready to Start» mantém a chama acesa, com Régine Chassagne também na bateria, a conferir uma pujança incrível à canção. Os Arcade FIre soam tão bem quando abraçam o rock. «Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)» é antecedida por um breve compasso para Régine trocar de roupa, para um casaco longo com lantejoulas grandes e brilhantes, obviamente. Aqui o ringue é novamente todo dela. Aquelas mãos também cantam. Sem elas não seria a mesma coisa.

«Reflektor» tem direito a uma projecção animada de David Bowie e a uma descida de Régine ao público para dançar no meio de nós. Comunhão. «Afterlife» dá vontade de dançar como a Greta Gerwin fez. De abraçar o desconhecido mesmo que pareça a coisa mais assustadora de fazer. «Creature Confort» leva-nos para terrenos mais electro antes de se regressar triunfalmente a Funeral, para «Neighborhood #3 (Power Out)» ao que se segue a saída de palco que antecede o encore.

O regresso acontece ao som de “We Don’t Deserve Love», numa versão por ventura melhor que a do álbum, mais introspectiva, com Win Butler a ocupar o lugar da sua cara metade na plataforma. «Everything Now (Continued)» trás de volta ao palco a Preservation Hall Jazz Band. Ficamos perante um palco cheio, como a alma de todos os que estão naquela sala. A fechar, «Wake Up» lembra-nos, mais uma vez, porque é que os Arcade Fire são realmente uma banda única ao vivo. Ao ver ali a Preservation Hall Jazz Band, não consigo deixar de pensar naqueles funerais característicos de Nova Orleães, com a banda a nortear o cortejo fúnebre onde, de uma forma muito própria também se celebra a vida.

No final, já com todos a improvisar no meio de um público rendido e agradecido, a vontade de ir embora não é muita de parte a parte, por entre jams mesmo junto a uma saída que dá acesso às entranhas do Campo Pequeno. Inolvidável.



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