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“As Primeiras Coisas” | Bruno Vieira Amaral

Enciclopédia de fatalidades

Quando começamos a leitura de “As Primeiras Coisas”, livro que marca a estreia de Bruno Vieira Amaral no mundo do romance, a ideia primeira é a de que será difícil deixarmo-nos surpreender pela história de alguém que, depois de ver a vida estilhaçar-se, regressa ao bairro de infância que, em tempos, havia deixado para trás com orgulho e desdenho.

«Cresci com a ideia de que só os derrotados, os vagabundos e os infelizes não saíam de lá», diz-nos Bruno Eugénio – o narrador -, no prólogo, sobre o Bairro Amélia, escrevendo no papel de «desempregado, desamparado, um pouco orfão», voltando ao bairro e a casa de sua mãe depois de perder o emprego e o casamento.

Cultivando «a regularidade de hábitos necessária quando se enfrentam períodos de inactividade ou desorientação», Bruno corre todas as manhãs, frequenta o café do bairro – com a dupla clássica Correio da Manhã e jornal desportivo –, onde conhece a desejável Carla, e visita a Biblioteca, lendo os classificados, os anúncios de emprego e desenvolvendo um gosto especial pelas catástrofes, sejam elas globais, locais ou pessoais.

Será na biblioteca  vai reencontrar Delfino Paiva, conhecido por Fion que, depois de um esgotamento nervoso, atirou com tudo às urtigas e dedicou-se por inteiro à poesia. Fion diz-lhe que cada português tem dentro de si um potencial poeta e, para o comprovar, mostra-lhe o “Poetas da Nossa Terra”, um volume de novecentas e tal páginas só com poetas do concelho. Nesse livro Bruno encontra a fotografia da «virginal Vera que eu esquecera quase por completo, regressada do passado, da névoa hertziana de um programa televisivo onde mostraram ao país a fotografia esbatida da menina que “desapareceu de casa dos seus pais”, para a minha nova realidade baça».

Desenganem-se os que pensam que se tratará, agora, da clássica aventura de um homem em busca de uma paixão congelada no tempo. Não que essa não possa ter sido a motivação original de Bruno mas, a sua demanda, será algo de mais grandioso. Bruno começa a ter curiosidade sobre algumas pessoas do bairro, falando com a mãe, procurando fotografias no velho móvel da sala, escrevendo nomes, acontecimentos e locais de que se recordava num velho bloco de cartas, tentando reconstruir o seu mundo de infância através daqueles que lá estiveram (alguns – muitos – ainda lá estão).

Essa busca leva-o até Virgílio, o fotógrafo, que se tornará na bola de cristal que lhe permitirá olhar o passado através de velhas fotografias e de muitas histórias que, para além de lhe mostrarem o interior do Bairro Amélia, lhe darão a conhecer também mais sobre si próprio. A partir das histórias contadas por Virgílio, Bruno irá construir um «dicionário incompleto, este inventário amputado de sonhos, memórias, fontes impressas ou descrições sem sentido», que o salvará de uma existência perdida – e até mesmo de si próprio.

E é nesse momento, no final de um prólogo de cinquenta e sete páginas, que tem início “As Primeiras Coisas”, uma imensa Enciclopédia de fatalidades apresentada por ordem alfabética, de pessoas que fizeram a história do Bairro Amélia: Adozinda, a mestre dos desmanchos; Adalberto, um génio que ouvia vozes a falar em russo; Dona Cremilde, que descia a escada falando com seres imaginários (como se tivesse um fantástico contrato com a morte); um dentista que arrancava dentes a sangue-frio;  o Doutor Santos, que passou do ser mais respeitado do bairro a “filho da puta fascista”.

Para além do desfilar de seres recorda-se um estranho Carnaval ou os Domingos passados a lavar carros, a ouvir Rui Mascarenhas, Iron Maiden ou as anedotas do Cantiflas português – consoante o humor ou o estado de espírito da vizinhança -, enquanto os sons do bairro e o aroma da comida nos vão acompanhando na rememoração de um bairro que, em si, comporta o país e o mundo inteiro.

Bruno Vieira Amaral tem um fantástico poder de síntese e uma escrita perfumada, fazendo de cada conto – ou entrada enciclopédica – um pequeno triunfo, onde cada palavra e sinal de pontuação conta e não pode ser atirado fora. Um pouco à imagem de Borges, que fazia de cada conto uma deliciosa narrativa.

Depois da estreia literária com “Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesas”, Bruno Vieira Amaral serve-nos agora um romance composto de pequenos contos, habitado pela melancolia e pela violência mas onde espreita, por detrás de um mundo de fatalidades, uma réstia de humanidade. «Viver é falhar», lê-se a certa altura. Bruno Vieira Amaral, para nossa sorte, acertou em cheio.



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