Azevedo Silva
Um cantautor que marca o universo musical português, em discurso directo
Azevedo Silva lançou “Monja Mihara”, o seu último álbum e, com a sua melancolia característica, uma vez mais edita um disco surpreendente. No seu universo muito próprio defende a originalidade, a marca de cada um que ousa no mundo em vez do mimetismo. Foge de temas óbvios como o amor romântico e encontra temas que nos tocam. Próximo de causas, revela uma consciência profunda social e política. Um cantautor que marca o universo musical português, em discurso directo.
O novo álbum, “Monja Mihara”, cuja apresentação será feita este mês, foi descrito por ti como um álbum feminino inspirado nas monjas tibetanas e pelos acontecimentos que ficaram para a História, como a Primavera árabe. Conta-nos mais desta história
Este disco é influenciado por esses acontecimentos, para ser claro. Não é um disco que fale sobre esses assuntos directamente. Há na base destas composições um sentimento de emancipação, de resistência, de luta, de pertença a maiorias silenciosas, em tudo semelhante aos movimentos feministas. Dar-lhe o nome de Monja é também assumir o risco de usar uma palavra estranha e trazer para o meu universo musical uma referência feminina. Depois há, claro, a referência mais óbvia à situação vivida no Tibete relativamente à opressão Chinesa. A luta feminista é uma pela qual me interesso, tendo eu sido maioritariamente educado por mulheres.
Na linha de continuidade que são os teus álbuns. Fala-nos deste último…
Como dizes, há uma continuidade, há uma construção, um processo. Se no início, com a “Tartaruga”, houve um álbum muito espontâneo e pouco produzido, agora a aposta é noutro sentido. Quem ouvir este disco reconhecerá a melancolia que me é característica mas não será muito difícil perceber que em termos sonoros há uma mudança significativa. Quer no tipo de som, quer no tipo de experimentação que foi feita. Por exemplo, já era o momento de deixar de ter a guitarra eléctrica arrumada no estúdio. Nota-se bem isso ao longo dos temas. Como disse, esse processo não é tão rápido como na “Tartaruga”. Resulta de um trabalho de alguns meses, com viagens à mistura, em que acontecem algumas revelações. Tudo isto sem ácidos. Sobriedade que torna os avanços e recuos talvez ainda mais frustrantes. No caso da parte de composição do Filipe não sei se posso dizer o mesmo.
No teu tema «Mediocridade» abordas a importância da nossa evolução constante. Queres desenvolver esta ideia?
Há um misto de sentimentos ao longo do disco e a mesma letra pode ter vários significados, consoante o espírito do receptor da mensagem. Comigo passou-se uma grande confusão de pensamentos, todos a convergirem para a mesma vontade de me exprimir sobre eles. Portanto, há várias ideias que me levam a abusar no nome que escolhi. Chamar-lhe «Mediocridade» é estar exposto a críticas mais ferozes. Essa sensação de mediocridade não me exclui e pertence ao meio em que estamos todos inseridos. Vem de tudo o que nos rodeia: de nos desleixarmos, de nos vendermos, de não sermos originais, de imitarmos modelos que nos são impostos pelas modas, de nos irmos desenrascando. Tudo isto com alguma passividade, com uma ausência de autocrítica que por vezes é gritante. Sempre com a sensação de que a culpa é de terceiros.
Tens alguma rotina para compor e gravar?
Nem por isso. Não vou querer comprometer a qualidade do meu trabalho em detrimento da quantidade. Normalmente as ideias base saem de uma forma muito espontânea, até quando estou no trabalho, com tempo livre. Quem me acompanha sabe que o processo seguinte é moroso e que só finalizo as letras no momento em que as estou a gravar, por exemplo. Às vezes posso perder várias horas de estúdio para decidir se digo “só eu” ou “só tu”. O que me acontece é que guardo as ideias na cabeça durante meses e guardá-las durante muito tempo cansa-me, daí a necessidade de gravá-las. Toda a base melódica da «Torto» foi orquestrada durante semanas, de uma maneira quase doentia, porque os sons e ritmos não me deixavam em paz.
Quanto demorou o disco a ficar gravado?
Embora compreenda o interesse de terceiros nessa questão, para mim não é relevante. Dizer que ficou gravado em pouco tempo não me traz grande mérito se o resultado for pior. Respondo-te assim só para teres noção que essa foi uma questão durante esta gravação. Por momentos pensámos que não seríamos capazes de cumprir prazos, que não estávamos suficientemente preparados para o que nos tínhamos proposto a fazer. Eu, o Filipe Grácio e o Fernando Matias. O que acontece é que há uma série de processos que dependem da produção, que não conseguiríamos concretizar se não fosse o Fernando. Como não pretendo produzir música a metro, se considerar o que faço como arte, não vejo qual a mais-valia em apressá-la. Não tendo certezas, diria que demorou um mês de estúdio e outro tanto para ter a certeza de que tudo estava como queríamos, para deixar a música ganhar maturidade e crescer.
Quais são as tuas influências musicais?
As “Investigações de um cão”, de Kafka, por exemplo. Não estou a brincar. Para mim tem muitas partes sonoras, daquelas que consigo imaginar na minha cabeça. É um dos meus contos amuleto. De resto há uma série de nomes, que estão presentes na formação de muitos músicos, até alguns nomes contemporâneas como Thom Yorke, Pj Harvey ou Shannon Wright. Durante a composição do disco o que mais ouvi foi Das Racist, Danny Brown, Bat For Lashes ou Oceansize.
Tu és um cantautor, comparando o incomparável pela individualidade de cada um, que foi apelidado de “novo Zeca Afonso”. O País chama por um novo 25 de Abril?
Ainda bem que ressalvas que existem coisas incomparáveis, apesar de algumas pessoas ainda insistirem nessas comparações. Depende do que seria esse 25 de Abril. Eu não acho que precisemos de mais militares com tantas regalias. Sem querer ser ofensivo, sou crítico em relação ao estado do País, estou certo que algo precisa de mudar mas não de uma maneira extremada. Não penso que seja precisa uma revolução porque isso implicaria mudar tudo, correcto? Uma revolução é quebrar com o que existe, mudar de paradigma. Nem tudo está mal e, portanto, não concordo com o Sr. Otelo nem com muita gente de esquerda com a qual me fui incompatibilizando ideologicamente. Penso que há muitas mentalidades para mudar mas parte de cada um, do bom senso de cada um. Sobretudo gostaria que as pessoas tivessem mais, repito, bom senso. É um pouco como o feeling da «Mediocridade»: parece que a culpa nunca é nossa quando alguém é chamado à responsabilidade. Também, respeitando o valor da independência que temos, não fantasio demasiado com o 25 de Abril. Tenho a certeza que mudou o nosso país mas o José Mário Branco já cantava no «FMI» alguma frustração com o desenrolar dessa revolução. Estou grato por todos os que lutaram para a minha actual liberdade mas, pegando no tópico do feminismo, passaram quase quatro décadas e a igualdade de género em Portugal é uma anedota. A educação tornou-se uma espécie de patetice, a saúde não está em bom estado, as discriminações homossexuais só deixaram de existir por decreto e, mais uma prova de que não evoluímos como humanos, é a ainda existente tortura de animais em canais públicos.
Os teus temas abordam questões políticas, sociais e urbanas. Sobre que temas não escreverias?
Será difícil escrever sobre amor, no sentido romântico-apaixonado. Vou prometer, e tentar cumprir, que nunca falarei sobre o Cavaco Silva, a ver se o nome cai em desuso.
Onde esperas que a tua música te leve este ano?
Temos tido essa conversa e temos os pés bem assentes na terra. Eu não posso dizer abertamente que muitas pessoas são medíocres e esperar que elas me batam palmas. Não posso dizer que somos uns hipócritas em relação à maneira como tratamos os imigrantes na Europa e esperar que as pessoas gostem de ouvir isso. Espero sempre que a minha música me leve o mais longe possível mas acho que serei um renegado. Provavelmente só chegaria longe se houvesse uma mudança de mentalidades e essa não a prevejo tão cedo. Vamos ver como corre a parceria com a Absurdo e a The Pentagon Recordings.
Como cantor intimista preferes os pequenos ou os grandes palcos?
Não sei como defines grandes palcos mas nunca toquei num festival de verão ou para grandes multidões. Deve ser uma experiência boa, se o público estiver lá para nos ver. Normalmente toco para mil vezes menos pessoas que os Led Zeppelin mas creio que eles gostavam dos estádios. Neste momento, gosto muito da variedade de espaços em que já tive a felicidade de tocar: para 30 ou 600 pessoas. Com estes três músicos, com os quais tenho o prazer de trabalhar (Filipe Grácio, Filipa Vale e André Pintado), gostava que o público nos pudesse ouvir em boas condições e confortavelmente, nas centenas de auditórios que existem espalhados pelo País.
Qual a importância do teu público?
Gosto de tratá-los como gostaria que me tratassem a mim. Mesmo ao meu nível “subterrâneo”, há pessoas que têm vergonha de me falar por julgarem que sou mais velho ou mais respeitado. Há fãs que me tratam por Senhor Azevedo, o que é muito estranho para mim. Uma das coisas boas que já me disseram, uma fã brasileira, é que é muito bonito que alguém que nós respeitamos tire um tempo para responder a um email ou uma carta. Era assim que eu gostava que os meus ídolos me pudessem tratar e, portanto, é assim que tento tratar as pessoas que me têm seguido. Às vezes demoro muito a responder.
Define-nos o teu estilo musical: Indie folk?
Essa é a pergunta rasteira para os músicos. Devíamos ser melhores a comunicar isso. Por exemplo, uma empresa que vende carros não se pode chamar Motas. É enganador. No entanto, penso que esse é o papel do público e da crítica. Não sou acústico, não sou fado, não sou “indie” ou “alternativo” como os Arcade Fire ou os Grizzly Bear. Sou um gajo que fala de alguns temas difíceis da vida, acompanhado de uma atmosfera pesada e densa. São temas escuros e, no “Monja Mihara”, acompanhados de sons eléctricos, acústicos e digitais. Ou mais a brincar, como diz o Grácio, Hip Hop-Reagge-Jazz-Post-Grindcore.
Se a tonalidade é predominantemente melancólica, adivinha-se claridade nas tuas mensagens. Concordas?
Concordo que o que eu tento expressar não é para deixar ninguém de rastos. Não é assim que vivo a minha vida. Tento ser um veículo da minha contemporaneidade. Na época que vivemos, e sendo eu uma espécie de gajo aborrecido-realista, é-me difícil deixar de abordar certos temas, como as injustiças que continuam a existir, apesar de nos acharmos muito informados e boas pessoas. Há biliões de pessoas que nascem, vivem e morrem na miséria. Nós aqui continuamos muito absorvidos nos nossos problemas de primeiro mundo e nem percebemos que somos brancos, europeus, educados, classe média, com os seus carros, telefones e cursos universitários. Gostava de conseguir abrir os olhos a alguns e que outros fizessem o mesmo comigo. Só que há iluminados que já viram a luz e usam Ray Ban.
There are no comments
Add yoursTem de iniciar a sessão para publicar um comentário.
Artigos Relacionados