Barreiro Rocks 2005

Sob o signo da guitarra.

O Elvis era um gajo do rock. Bach era um gajo do rock. O Maradona é um gajo do rock. E Pessoa e Brando e Kinsey e até o Hitler. O D. Afonso Henriques foi o maior gajo do rock de sempre!

O rock n’ roll é tão velho quanto o Homem, senão mais ainda. E se têm alguma dificuldade em acreditar nisto, bastava terem ido ao Barreiro Rocks, o maior festival rock da Península Ibérica. E aí tudo isto vos faria mais sentido.

Com efeito, durante os dois dias do festival, o rock n’ roll invadiu a cidade do Barreiro, que trocou o fato-macaco industrial pelas calças de ganga, o blusão de cabedal e os ténis All-star. Pelo palco desfilou uma panóplia de rock n’ roll, blues, soul, garage e punk; enfim, tudo o que pudesse significar festa, suor e cerveja.

A Rua de Baixo, orgulhosa aliada da edição do certame deste ano, esteve presente neste fim-de-samana abençoado sob o signo da guitarra e testemunhou o festival que, infelizmente, passou um pouco ao lado da maioria das pessoas que, vergonhosamente, insistem em ignorar os eventos que fogem um pouco mais do circuito comerical.

Dia 1

Se procurarem no dicionário musical a palavra “festa”, junto encontrarão uma fotografia dos Los Chicos. Coube-lhes a honra de abrirem o festival e percebeu-se porquê. Munidos de um rock n’ roll entre o glam e o punk, o concerto dos Los Chicos foi uma celebração musical (por vezes com mais de celebração do que de musical), que se prolongou para lá do palco. Frenéticos e imparáveis, tudo serviu para a festa dos Los Chicos, desde o rockabilly de brilhantina no cabelo até às baladas glam de fato de lantejoulas.

Os The Hells eram os senhores que se seguiam. Depois da passagem cancelada pelo nosso país no malogrado Festival do Dragão, os The Hells tinham contas a ajustar e não quiseram desfraudar as expectativas. Duo rock na sua fórmula mais simples – guitarra e bateria – apostaram numa pose mais selecta, sufocando o blues minimalista sobre camadas espessas de distorção e de garage rock. Depois de um início algo tímido, o concerto entrou em crescendo, principalmente quando foram visitados os temas do EP de estreia. No final, as expectativas estavam alcançadas.

Os The Black Lips vieram terminar a digressão europeia a Portugal, depois de um ano na estrada a promover o segundo álbum de originais “We Did Not Know The Forest Spirit Made The Flowers Grow”. Descrever os The Black Lips é um exercício simples e divertido: imagine os The Monkees, versão deliquente juvenil; pense nos The Kinks e no seu britrock; por fim, imagine a faceta mais destrutiva dos The Who. Agora junte tudo, misture com uma enorme quantidade de insanidade, cargas intensas de distorção e multiplique por mil: o resultado são os The Black Lips. Apesar da juventude da banda, os seus membros demonstram uma inesperada cultura musical e no final, no meio de todo aquele motim mascarado de demência psycho-punk que foi o concerto, toda a sua música fez sentido.

Mas se a juventude é uma arma, a idade é um posto e Billy Childish não o descurou. Verdadeira lenda viva do rock, Billy Childish continua parado numa fenda temporal entre o final dos anos 60 e meados dos anos 70, facto que o seu bigode e o seu traje vitoriano não deixa enganar. Os seus dois companheiros que completam os The Buff Medways alinham pelo mesmo diapasão e subiram ao palco para fechar a primeira noite de festival de forma descontraída e pujante. Eram apenas três mas encheram o palco, contaminando o público para a actuação mais completa da noite (quiçá do festival), num registo britrock que revisitou a discografia da banda. E como Childish não é deamsiado orgulhoso, ainda se ouviu «A Quick One While He’s Away», dos The Who e «Fire», de Jimi Hendrix.

Complicações técnicas levaram a que os concertos começassem com pouco mais de uma hora de atraso. Quem saiu prejudicado com o atraso foram os The Buff Medways que não puderam estender a sua actuação ao encore tão pedido pelo público, uma vez que o tempo não espera por ninguém e as horas já iam avançadas. No entanto, a festa continuava fora do recinto do festival no mais intimista Espaço B, armazém trasnformado em interessante sala de espectáculos. E antes da performance de DJ Shimmy, houve ainda direito a um pequeno e inesperado rebuçado: os desconhecidos espanhóis Juanita Y Los Feos subiram a palco para uma abravisa actuação garage-punk, com uma vocalista entre o registo de Siouxsie And The Banshees e a dicção de Nina Hagen, actuação que só pecou por ter sido breve.

Dia 2

A segunda e última noite do Barreiro Rocks iniciou-se sem atrasos. E desta vez, quem sofreu com a pontualidade foi a banda de abertura, o duo francês The Magnetix, uma vez que actuou para uma plateia desfalcada pela convocatória para o jogo da selecção nacional, que jogava à mesma hora. Looch Vibrato, vocalista e guitarrista, desabafou às tantas “I’m fucked with the fuckin’ football”. E era motivo para tal.

Os The Magnetix são um eficaz e tradicional duo garage-rock, fórmula cada vez mais comum e usual – uma baterista vistosa e um guitarrista/vocalista explosivo, sem pejo de abandonar o palco para o meio da audiência. Com um rock primitivo e visceral à base de riffs sensuais e uma bateria marcial, os The Magnetix andaram vezes de mais pelo garage musculado em detrimento da espontaneidade.

Quem não deixou os créditos por mãos alheias foram os The Coyote Men. Donos de um folclore visual bastante apelativo, o quarteto de Newcastle apresentou-se ao vivo envergando as tradicionais máscaras de luta-livre sul-americana. E de facto, luta-livre foi o que não faltou à actuação: entre os elementos da banda e os roadies, entre os elementos da banda e o público e até entre os próprios elementos da banda. Tudo no bom sentido, é claro (até houve um espectador mais audacioso que terminou o concerto empunhando a guitarra e dedilhando acordes aleatórios), na boa tradição do garage rock, festivo, sonoro e catastrófico. Uma actuação que valeu sobretudo pela componente visual.

Os Dt’s definem-se como uma banda de hard-soul, uma fusão entre o hard-rock dos AC/DC e a soul de Janis Joplin. E de facto, não há melhor descrição possível. Oriundos de Seattle, a banda norte-americana serviu um prato de r&b temperado a hard-rock com Dave Crider a tocar guitarra constantemente entre a plateia e com Diana Young-Blanchard a comandar as hostes em cima do palco. E que portento é a sua voz, negra e profunda, a fazer lembrar os ícones Aretha Franklyn ou Tina Turner. Aliás, se Ike e Tina Turner tivessem surgido no século XXI, certamente que soariam assim. Houve ainda tempo para «Pagan Baby», dos sulistas Creedence Clearwater Revival e só ficou a faltar a versão de «What’s Next To The Moon», dos AC/DC, perante um público mais interessado do que interventivo.

Para encerrar o cartaz estava marcada a actuação dos ingleses The Flaming Stars, verdadeiros senhores de pose bastante british, cujos dez anos de carreira permitem uma aparência bastante sobranceira, mas que afinal é só aparente, uma vez que Max Decharné é muito mais tolerante e afável do que parece.
Os The Flaming Stars impressionaram pela sua atitude, serena mas violenta, dançável mas introspectiva, apaixonada mas cínica. Ao longo de dois dias de música, foram a banda mais pessoal do cartaz, num concerto que fez imaginar Nick Cave à frente de uma banda de garage-rock. Só não foram a cereja no topo do bolo, porque a festa ainda iria continuar.

Com efeito, após a passagem das hostes para o Espaço B e antes de mais uma actuação de DJ Shimmy, “um americano louco com a maior colecção de singles soul e garage alguma vez vista”, houve nova surpresa, ideal para terminar o festival em grande: a actuação dos The Act-Ups. A actuar em casa, os The Act-Ups resumiram em pouco mais de meia-hora o que foi o Barreiro Rocks – blues-soul (com «Shinny Black Bitch Boots»), punk-rock (com «Under My Own Sun») e rock n’ roll (com o hino «I Bet You Love Me Too»).

Rescaldo

Em jeito de consideração final proponho um curioso e breve exercício ao leitor; das seguintes premissas enumeradas acerca do festival apenas uma é falsa. Desafio-o a identificá-la:

1) No Barreiro Rocks a área do palco estendia-se até aos limites do recinto;

2) No Barreiro Rocks era permitido dar de beber aos artistas, mesmo que estes estivessem em cima do palco e a actuar;

3) No Barreiro Rocks não havia distinções entre músicos e público; era como uma família que assistiam aos concertos todos juntos;

4) O Barreiro Rocks provou ser um festival dispensável;

5) No Barreiro Rocks era normal um músico permitir aos espectadores tocarem com eles, mesmo que isso significasse emprestar o seu instrumento;

Vou deixar a solução ao vosso entendimento, mas posso adiantar que a premissa falsa está algures entre o ponto 3 e ponto 5.



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