Barreiro Rocks 2006

Barreiro – capital ibérica do rock’n’roll.

A maioria das pessoas apenas conhece o Barreiro como uma cidade plantada em frente a Lisboa, do outro lado do Tejo, onde existem uma meia-dúzia de fábricas e indústrias e onde pouco ou nada se passa. O que estas pessoas não sabem é que nas suas entranhas revolve-se uma das mais diabólicas cenas rock do nosso país, que todos os anos eclode naquele que é já considerado o maior festival de garage-rock da Península Ibérica – o Barreiro Rocks.

Por isso, não é de estranhar que sobre o palco montado no velhinho pavilhão do Grupo Desportivo Os Ferroviários estivesse pendurado um enorme painél, onde um operário fabril segurava orgulhosamente uma flying-v – o novo proletariado rock, como Joaquim Albegaria, vocalista dos Vicious 5, fez questão de referir.

Depois de uma aposta em maior escala na edição do ano passado, a organizadora Hey! Pachuco decidiu regressar este ano às instalações do Grupo Desportivo Os Ferroviários, que já havia servido de base ao festival em 2003. E o que se perdeu em qualidade de som, ganhou-se em familiaridade e intimismo. Que o digam os dezenas de espanhóis presentes, que todos os anos invadem o festival, e que contagiam toda a gente com a sua boa-disposição, rebeldia e algum (saudável) juízo a menos.

Mas como é da música que se faz o festival, eis a crónica do que se passou nos passados dias 6 e 7 de Outubro, no Barreiro.

DIA 6

Rockabillies de brilhantina no cabelo, punks de blusão de cabedal, raparigas de franja e saia rodada, rockers com os braços cobertos de tatuagens, muitos ténis all-star e ainda muito mais pins nas camisas. O cenário não engana, ao chegarmos ao Barreiro Rocks.

De regresso ao Grupo Desportivo Os Ferroviários, local que havia assistido há três anos à respectiva edição do festival, o Barreiro Rocks deste ano voltava a prometer dois dias de intensa comunhão rock’n’roll entre esta míriade de gente.

Vicious 5

O pontapé de partida do festival voltou a ser dado em português, após um ano em que o cartaz foi falado na generalidade em estrangeiro. Para quem os tem acompanhado ao longo deste último ano, os Vicious 5 estão cada vez mais sólidos musicalmente e neste concerto até dispensaram as versões que costumam fazer ao vivo.

Usam as t-shirts certas, são (bastante) fotogénicos, sabem dançar e têm uma mão cheia de boas canções. No entanto, ainda falta algo aos Vicious 5 que os faça dar o passo qualitativo decisivo. Talvez seja um pouco mais de atitude, ou um pouco mais de espontaneidade. O que é certo é que quando aprenderem a eliminar as pausas gigantescas entre os temas, terão concertos bem melhores.

The Black Time

Quando o rock britânico invadiu os Estados Unidos, no final década de 60, muitos jovens começaram a tentar imitar os seus ídolos, formando bandas juntamente com os amigos que mal sabiam tocar, ensaiando em caves barulhentas com material que deixava muito a desejar, na maior parte das vezes. Foi assim que nasceu o garage-rock, a maioria das vezes com poucas condições técnicas, mas sempre, sempre com muita vontade e empenho.

Os The Black Time continuam a perseguir esse sonho e, para já, estão a consegui-lo, com quatro álbuns lançados sob o selo da mítica In The Red. Lemmy Caution é uma espécie de Roy Orbison novo, que ao lado da (linda) baixista Janie Too Bad e do baterista Mr. Stix, ultrapassam facilmente a escassez de meios com muita atitude em palco.

Com um rawk’n’roll visceral e cru, Lemmy Caution relembra-nos a todos que os microfones foram feitos para se gritar o mais alto que conseguirmos, enquanto que Mr. Stix ia aquecendo os seus ritmos tribais para o concerto a seguir, da sua outra banda, os Blood Safari. Fosse o público presente um pouco mais volátil e, certamente, teriam havido mais estragos nas primeiras filas.

Blood Safari

Há três anos atrás, Vítor Torpedo, Pedro Xau e os seus Parkinsons haviam dado um concerto memorável naquele mesmo festival e naquele mesmo espaço: Agora, estavam de regresso para apresentarem ao público português a sua nova banda, os Blood Safari, ao lado do baterista Mr. Stix e do vocalista Charlie Fink.

E após o caótico concerto ficou uma impressão importante: Charlie Fink é um excelente vocalista, num registo bastante semelhante ao do ícone Charlie Feathers, que não pode ficar tanto tempo submerso pela distorção e pela guitarra. Em suma, os Blood Safari têm o que falta aos Vicious 5 e os Vicious 5 têm o que falta aos Blood Safari. Basicamente, o que lhes falta é mais alguns temas de refrão orelhudo, que possam acompanhar músicas como “Everything Turn To Shit”.

Mas continua a ser sempre agradável ver que Vítor Torpedo mantém uma estranha atracção para longe do palco, embarcando em crowd surfing com fartura, e que continua a divertir-se a fazer aquilo que sabe fazer melhor. E desta vez tem ao seu lado um colectivo muito mais competente tecnicamente do que tinha há três anos atrás.

Atom Rhumba

Os espanhóis Atom Rhumba eram o segundo regresso da noite ao Barreiro Rocks. Depois de terem tocado no festival em 2001, os Atom Rhumba foram os escolhidos para encerrar a primeira noite desta edição, um sinal da evolução musical da banda nestes últimos anos.

Quem os tinha visto há cinco anos esperava ansiosamente na fila da frente, por aqueles espanhóis loucos. E para quem apenas conhecia “Backbone Ritmo”, o aclamado álbum de 2004, as expectativas também não eram muito mais baixas.

Adeptos de um surf-rock áspero e agressivo, os Atom Rhumba foram uma espécie de You Say Dance We Say Die em versão rock, com resquícios funk de James Brown e dos esquemas de guitarra de Captain Beefheart ou Pussy Galore, numa mistura musical explosiva e com grande capacidade dançável, ou não tivesse o teclista Iñigo Cabeza Fuego saído directamente de uma matiné em plena febre disco dos anos 80 para o Barreiro.

Por uma hora, o pavilhão do Grupo Desportivo Os Ferroviários transformou-se numa enorme pista de dança, naquele que foi o final perfeito para a primeira noite do Barreiro Rocks 2006.
DIA 7

O segundo dia de festival parecia que estava fadado ao insucesso, tal foi a sequência de imprevistos a acontecerem. Tudo começou dias antes quando os Los Ass Draggers se viram forçados a cancelar a sua presença no Barreiro, fazendo com que os (também) espanhóis Wau Y Los Arrghs passassem do after-hours para o prime time do festival, sendo substituídos pelos Los Santeros. Depois, já durante os espectáculos, os Drones perderam-se no caminho até ao Barreiro e, como não há duas sem três, em plena actuação dos Gallon Drunk, o bombo partiu-se e obrigou a uma paragem forçada do concerto. Talvez fosse da lua cheia… Mas o que é certo é que quando a organização é competente e os artistas simpáticos e acessíveis, o público é compreensivo e ajuda a ultrapassar estes imprevistos em conjunto, tornando aquela noite em mais um serão inesquecível.

The Fatals

Coube aos franceses The Fatals abrirem as hostilidades deste segundo e último dia de festival. Contudo, as coisas não começaram fáceis; o mau som do início fez com que durante os três primeiros temas parecessem que estavam apenas a ver quem conseguia fazer mais barulho. Mas à medida que as condições sonoras começaram a melhorar, a actuação dos Fatals entrou em crescendo.

Adeptos de um garage-punk com influência de gente como os Oblivians ou os Misfits, os The Fatals inflaram a sua música com os níveis de distorção mais altos que o festival conheceu, transformando o headbanging num impulso compulsivo que, sob o palco, parecia afectar especialmente o baterista Stef, uma espécie de fusão entre Keith Moon e Gene Krupa.

Wau Y Los Arrghs

Certa vez, ao conhecer Whitney Houston num talk-show, Serge Gainsbourg disse-lhe muito delicadamente, em directo para a televisão nacional francesa inteira, que a queria foder. Muito provavelmente, os Wau Y Los Arrghs fariam o mesmo se tivessem essa possibilidade, uma vez que era um disco da diva norte-americana que o vocalista, Juanito Wau, empunhava e beijava, enquanto cantava declarações de amor desbocadas e menos próprias.

Os Wau Y Los Arrghs são a mais recente sensação do panorama rock espanhol, um quinteto que faz as suas próprias versões em espanhol de clássicos do party e do surf-rock dos anos 60 (com referências óbvias aos Trashmen e aos Cramps, por exemplo), num garage-rock brutal e diabólico.

Juanito Wau é uma espécie de Tom Waits afónico (sim, é um elogio), que com a sua performance demente, foi o melhor escape que se poderia encontrar para aquela que foi a maior surpresa desta edição do Barreiro Rocks.

Gallon Drunk

Os Gallon Drunk são uns senhores, cujo porte assinalável e o longo currículo impõem respeito. E a passagem pelo Barreiro apenas serviu para confirmar esses pergaminhos. Com os The Drones perdidos algures entre o Samouco e o Lavradio, os Gallon Drunk não tiveram problema em tocar mais cedo, deixando à banda australiana o privilégio de encerrar o festival. E quando ao fim da terceira música o bombo partiu-se, os Gallon Drunk voltaram a reagir com calma e profissionalismo. E quando assim é, torna-se muito mais fácil ao público aceitar e entender os imprevistos técnicos. Uma grande prova de atitude e de profissionalismo.

A paragem forçada que a troca de bombo obrigou não afectou a actuação da banda de James Johnson. Prolongando o negrume dos Birthday Party – são actualmente os reis do swamp-rock –, os Gallon Drunk proporcionaram, de longe, o melhor concerto do Barreiro Rocks deste ano. Não foi por acaso que fizeram o único encore do festival.

Daniel Johnston liderou as hostes numa actuação com tanto de apaixonada como de cínica, mergulhando constantemente nos blues da sua harmónica demente, numa teatralidade psicadélica que fez lembrar os Doors nos seus melhores tempos, ou irrompendo em catarses rock, que já haviam sido experienciadas no Barreiro o ano passado, durante a actuação dos Flaming Stars.

The Drones

Vir da Austrália para a Europa e perder-nos em terras como o Samouco é uma aventura genial para contar aos netos, na posterioridade. Pois os The Drones já se podem orgulhar de a ter para contar.

Chegaram a estar cancelados, mas conseguiram chegar mesmo a tempo. E ainda lhes calhou o brinde de encerrar o festival. Na bagagem trouxeram “Wait Long By The River And The Bodies Of Your Enemies Will Float By”, o último registo de originais, o Australian Music Prize deste ano e uma grande dose de expectativa.

Se existe algo mais sexy do que uma mulher a tocar guitarra, só memso uma mulher a tocar baixo (alguém mencionou os Black Time?). E os The Drones têm a bela Fiona Kitschin nesse posto. Também têm um luso-descendente como guitarrista, mas Rui Pereira é, muito provavelmente, o gajo com menos estilo de sempre a tocar guitarra da história do rock. Pormenores apenas…

Influenciados pelo rock sulista, como uma espécie de Lynyrd Skynyrd garagistas ou, mais recentemente, os Kings Of Leon, os The Drones deram um concerto intenso, apoiado em músicas prolongadas por divagações sonoras para tentar enganar um reportório algo curto, que mesmo assim não impediu de deixar alguma água na boca à espera de mais.



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