Blasph | “Frankie Diluvio Vol 1”

Blasph | “Frankie Diluvio Vol 1”

Na estreia oficial a solo, Blasph serve a receita habitual: língua aguçada ao serviço de punchlines memoráveis

Na artwork (autoria de Chikolaev) que acompanha “Frankie Diluvio Vol 1”, ficamos a conhecer – para os que ainda não conheciam – uma das imagens de marca de Blasph: numa margem do rio (Tejo), com o Cristo Rei nas suas costas, Blasph contempla, sentado debaixo de um céu escuro e chuvoso (o que inspira o título do álbum), a outra margem, ou seja, Lisboa. Falamos, pois, de uma das marcas identitárias – a geográfica – mais fortes de Blasph, visível na exaltação da Margem Sul do Tejo como laboratório de algum do melhor hip-hop que é hoje produzido em Portugal (sem esquecer que foi lá onde ele floriu – basta pensar em General D, Líderes da Nova Mensagem ou, claro, nos Black Company): “É aqui que mora a coroa / na outra margem, Margem Sul de Lisboa”, assim se ouve, sob um beat pesadíssimo, em «L».

Outra das marcas identitárias de Blasph é a pertença ao colectivo Sistema Intravenoso, facto curioso numa era em que o conceito tradicional de colectivo (ou crew) de hip-hop (Wu-Tang Clan, para não ir mais longe), adormecido na primeira década do novo milénio, ressurge agora em força (Black Hippie, A$AP Mob, Odd Future, Pro Era). Embora com uma discografia oficial ainda reduzida enquanto colectivo, o Sistema Intravenoso conta nas suas fileiras com alguns dos mais talentosos rappers e produtores do país, ou não estivéssemos a falar, entre outros, além do próprio Blasph, de Pródigo (que lançou o ano passado “Filho Perfeito”), Víruz, Nerve («O Serviço», com colaboração de Blasph, é, em nossa opinião, um dos melhores storytelling que há memória no hip-hop português), Syniko ou TH (estes dois produzem a grande maioria das faixas do disco). Oiçam o álbum “Dentes de Ouro e Flow de Platina” (2011), da parelha Pródigo e Víruz, e perceberão do que estamos a falar: beats de luxo a transpirar freshness acompanhados de letras onde há lugar para tudo: amor, poesia, intervenção, humor, javardice e, sobretudo, muita, muita punchline (oiçam «Os Maus da Fita» e depois não digam que não avisámos).

É também este teor eclético que atravessa “Frankie Diluvio”, álbum com que Blasph se estreia oficialmente nas lides discográficas, depois de uma compilação não-oficial de faixas soltas posta a circular na net. Aliás, dá-se o caso de o álbum de Blasph acabar por “repetir” três das faixas dessa compilação, nada de menos bom daí advindo visto se tratarem de três bombas de punchline como só Blasph sabe largar. De facto, «Chipalas», «Doses» e «Digam Lá» (com Bdjoy) são rap com bolinha vermelha que, não agradando a toda a gente, serão, com toda a certeza, para aqueles que andam nisto há muito tempo e sabem que o fascinante do hip-hop está na sua diversidade e nos seus paradoxos (entenda-se: o paradoxo andante que foi o Tupac de “Hit ‘Em Up” e o Tupac de “Keep Ya Head Up”), puro deleite (um pouco à semelhança do que acontece com Regula, que ainda há pouco lançou “Gancho”), tamanho é o domínio de Blasph na construção de rimas multi-silábicas ao serviço de tiradas homicidas.

“Frankie Diluvio” notabiliza-se, sobretudo, para além da mestria na punchline (há coisas que só mesmo Blasph sabe cuspir com obscenidade e classe em doses iguais), na recuperação, em termos sónicos, do G-Funk com que Dr. Dre, nos idos de 90, revolucionou o hip-hop a partir da California, dando à luz a sonoridade com selo west coast (e que Dâm-Funk tem vindo a reciclar com o seu sedutor electro-boogie): samplagem do funk endiabrado tocado por gente como os Parliament e os Funkadelic (igualmente audíveis nos álbuns de alguns dos seu mais famosos membros, com George Clinton e Bootsy Collins à cabeça) acompanhada de baixos a rebentar pelas costuras (fat bass, não há melhor forma de o dizer) e, como pedra de toque, finas linhas melódicas tecidas pelos então inovadores – ao menos no mundo do hip-hop em sentido estrito (a bem dizer, os Kraftwerk já lhes tinham dado bom uso antes) – sintetizadores (a que Timbaland e companhia deu novos contornos, quase sempre de mau gosto, no hip-hop da primeira década dos anos 2000). É assim que «Rap d1 Gajo», «Suspeitos do Costume», «Nuvens Cinzentas» ou «Eu Sei o Kek Tu Keres» transportam esse inconfundível sabor a Los Angeles, o qual vai beber na origem a “The Chronic” (1992), “Dogg Food” (1995) ou “Doggysyle” (1993) – não é por acaso que «Murder Was the Case» é expressamente citada por Blasph em «Suspeitos do Costume». Mas Snoop Doggy Dogg (era assim em 93, antes da patetice do “Lion”-acabei-de-descobri-Jah-e-quero-paz-no-mundo) é também influência directa na forma como Blasph não raras vezes distorce a fonética das palavras (anasalamento) para fazê-las rimar – assim de repente, vem-nos logo à cabeça o “normélll” (de “normal”, para rimar com a letra “L”) que se ouve mais do que uma vez em “Frankie Diluvio”.

Mas nem por isso a sonoridade de Frankie Diluvio é monolítica, longe disso: fazendo a ponte com a east coast de Premier e Large Professor, Blasph oferece boom bap clássico nas restantes faixas, com natural destaque para a produção de Sam the Kid em «Acena», instrumental dulcíssimo (scratch de Nelassassin) em que, depois de Blasph abrir as hostilidades com tom pedagógico (“Dá-me um boom bap / até o Rakim se comove), Nerve, com o seu flow característico, dá um show de wordplay, com a ironia e o humor habituais na hora de brincar com as palavras e fazer trocadilhos impossíveis (brilhante a passagem “Se ela colabora / cool, lá fora / o cu labora / no meu Big Ben a qualquer hora”).

À punchline sem mácula acrescem momentos mais introspectivos de doce melancolia, como aqueles que se ouvem em «Nuvens Cinzentas», onde Blasph e Beware Jack (que tem dado na vistas nos últimos tempos e aqui não é excepção), secundados pelo falsete de Vinil, rapam sobre um quotidiano suburbano estéril pontuado por muito álcool e fumo. O mesmo quotidiano, aliás, de «Suspeitos do Costume»: “Eu adoro a minha rotina / beber birra, jogar play / Quanto menos um gajo faz, menos um gajo quer fazer / Quanto mais um gajo bebe, mais um gajo quer beber…”. Há, neste fare niente, tanto de dolce como de amargo, um tédio imenso (reflexo, de resto, de uma juventude à deriva num país sem oportunidades) que se, para Hemingways e companhia, constituiria motivo para isolamento no cimo de um monte recôndito culminado com um tiro na cabeça, aqui explode sob a forma de uma apologia luxuriante da inércia (não foi e continua a ser esta, afinal, uma função de escape do hip-hop?). «Eu Sei o Kek Tu Keres», por sua vez, é balada de amor venenoso (o feitiço que se vira contra o feiticeiro) cuja sonoridade hipnótica nos traz à memória «Fantasy», do primeiro álbum de Schoolboy Q (“Setbacks”, 2011).

No capítulo das colaborações, além das já referidas, destacam-se os nomes de Skunk (beat de «Respiro»), Here’s Johnny (que assina a produção de duas faixas) e, no microfone, Pródigo e Kacetado (em «Fruntcha»).

Num ano até ao momento pouco fértil em lançamentos de hip-hop, “Frankie Diluvio” apresenta-se como uma das cartadas fortes (a par do já mencionado “Gancho”), restando-nos agora esperar (salivar, melhor dizendo) por “Trabalho e Conhaque”, aguardadíssimo segundo álbum de Nerve. Fora do colectivo intravenoso, continuam a ser uma incógnita as datas de lançamento do segundo álbum de instrumentais de Sam the Kid e de “Homo Líbero”, de Valete.



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