Caminhos da Água 2018

Saímos da cidade e fomos conhecer a iniciativa que leva a cultura a 13 municípios que têm o rio Tejo como ponto de contacto.

,

Nascido no seio da Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo, o projecto Caminhos não é um festival. Dividido em três períodos de programação intensa em 13 municípios das imediações do rio Tejo, o projecto procura desenvolver os hábitos culturais dos habitantes através de uma programação cultural contemporânea regular. Essa programação, que pretende explorar as três vias que interligam as localidades da região (os caminhos-de-ferro, o rio e as estradas), teve na passada semana a mais recente expressão: os Caminhos da Água. Assim, no último fim-de-semana, a RDB assistiu a alguns dos espectáculos que passaram por Alcanena, Minde, Abrantes, Sertã e Vila de Rei. Durante quatro dias, houve música, teatro de rua, circo contemporâneo e percursos que nos levaram numa caminhada de descoberta por ribeiras e riachos nas imediações do médio Tejo.

Chegámos à noite à praça 8 de Maio, em Alcanena, onde já muitos alcanenenses se reuniam para assistir ao espectáculo de circo contemporâneo “The Funes Van”, da companhia The Funes Troup. Munidos de claves de malabarismo e algum sentido de humor, os três rapazes de Bilbao entreteram miúdos e graúdos durante uma hora, antes do concerto que viria a acontecer alguns metros ao lado.

Depois de muita acrobacia, saltos e piruetas, foi hora de compensar a frescura da noite, abanando as ancas com o semba quente de Bonga e companhia. Sempre de dikanza (reco-reco) na mão, a estrela angolana fez a praça de gente de todas as idades que dançava ao ritmo das diversas percussões. No alinhamento não faltaram clássicos como «Homem do Saco», «Olhos Molhados», «Água Rara», «Mariquinha» ou «Mulemba Xangola», não abdicando Bonga da sempre malandra e intimista interacção com o público.

Bonga | Alcanena

Bonga | Alcanena

Findada a primeira noite, estávamos ainda longe de conhecer a dimensão total dos Caminhos da Água. Foi ao segundo dia que começámos realmente a percebê-la.

“A Selva” é uma criação de Tiago Correia, consequência de uma residência artística em Minde, a partir dos testemunhos de habitantes locais. A partir de um simulacro inicial onde as personagens entravam numa discussão devida à ausência do encenador no ensaio, uma voz minderica comum ia-se revelando, como que desabafando sobre o estado da cultura no interior e particularmente em Minde. A pouco e pouco a memória de um passado glorioso ia-se revelando, culminando o simulacro no percurso que era esperado. Dividindo o público em três carrinhas, os actores levaram o público pelas ruas das suas memórias de Minde: desde a adega do avô às ruas onde se jogava à bola, do miradouro do cruzeiro até ao cheiro da mata que as mães reconheciam nas crianças, do passado industrial ao Cine-Teatro Rogério Venâncio.

Foi justamente à porta desse lugar com quase 70 anos de tradição teatral que as carrinhas estacionaram. Afinal, aquela era a memória comum a todos, o sítio onde se fizeram e cresceram enquanto actores e onde continuavam a sê-lo. Ao entrar no teatro, vislumbrámos uma nuvem de fumo, como que materialização das memórias que tinham sido evocadas até ali. Sentámo-nos e o percurso terminou com a visualização de um pequeno documentário com os testemunhos de vários locais sobre o teatro e Rogério Venâncio – que, do alto dos seus 99 anos, não se coibiu de dizer também umas palavras.

"A Selva", de Tiago Correia | Minde

“A Selva”, de Tiago Correia | Minde

Na manhã seguinte, acordámos para dar uma volta no submarino terrestre do Projeto EZ, uma sensibilização didáctica para a preservação da água em forma de experiência sensorial móvel. Através de parafusos e roldanas, sons e narrações, a engenhoca bem engendrada circulou pelas ruas do centro de Abrantes ensinando alguns factos aquáticos aos tripulantes que se alistavam para navegar.

À tarde deslocar-nos-íamos até à Sertã para nos perdermos no Jardim da Serrada, junto à ribeira, através do percurso sonoro preparado por João Bento a partir daquele e para aquele lugar. Colocados os auscultadores, sincronizámo-nos uns com os outros de forma a se ouvir o mesmo, ao mesmo tempo. Foi a seguir, depois de carregarmos no play à contagem de João Bento, que imergimos no espaço sonoro do Jardim da Serrada. Da pirâmide de cordas ao ulmeiro, dos instrumentos de rua ao moinho de água, sentimos com as mãos e os ouvidos as texturas e os timbres daquilo que íamos encontrando à nossa volta. Sempre guiados pela voz que ouvíamos na cabeça, íamos conhecendo a história daquele lugar, através de uma narrativa poética e sonora construída como um sonho. Perdíamo-nos nele, por vezes não sabendo se a paisagem que víamos e os ruídos que ouvíamos eram realidade ou construção. Findado o percurso, houve ainda oportunidade para escutar e interagir com o interior do curso de água, provavelmente aquilo que mais marcava a paisagem da zona, através da colocação de hidrofones dentro do mesmo e de colunas à superfície.

O Sol ia-se pondo lentamente e, mais à frente na ribeira, alguns ainda tomavam banho na Praia Fluvial da Ribeira Grande, onde daí a momentos começaria o espectáculo “Entremundos”, da Companhia PIA. Com o arrastado pôr-do-sol, emergiram personagens misteriosas e cabeçudas, de rostos pesados do tempo. E sobre o tempo dançaram, de trás para a frente mimicando a dor das horas, dos dias, das incertezas, dos arrependimentos, da vida e da morte. Pesou-nos também a nós, principalmente com os esqueletos das quatro personagens a tocar-nos, com as entranhas ao vento, lembrando-nos que temos todos o tempo contado.

"Entremundos", da Companhia PIA | Sertã

“Entremundos”, da Companhia PIA | Sertã

O último dia seria passado em Abrantes, a começar pela peça de teatro de rua da companhia Circolando. “Água” é uma reflexão sobre a forma como esse elemento – e o ambiente no geral – é tratado, colocando as “mudanças climáticas na ordem do dia” – como dizia a pivot do telejornal satírico dentro de um dos três iglus construídos para a ocasião. Recorrendo a uma grande intensidade performativa e textual, a construção cénica permitia aos espectadores ou acompanharem um dos protagonistas ou ir circulando pelas três interpretações distintas, que acabavam por se unir no final. Humor, sátira,  metáfora – como o combate de pugilismo com o planeta Terra, no qual se agradeceu o troféu a grandes petrolíferas como a Shell e a BP -, trocadilhos e até artifícios multimédia – como a gravação ao vivo de um vox popque era posteriormente exibido numa pequena televisão – permeavam o espectáculo, que tanto fazia rir quanto chocava quem via e circulava pelo cenário instalado no Parque Tejo.

No final da tarde rumámos ao topo da encosta para de novo pensar no tempo, durante o percurso desenvolvido por Francisco Goulão para o castelo de Abrantes – ou “Abre antes!”, como dizia uma das lendas que contou. Pelos recantos mais ou menos escondidos do castelo, Goulão partilhava connosco histórias da sua infância e família misturadas com a história e factos de Abrantes – desde a origem do nome da cidade à tradicional Palha de Abrantes. Ainda que pecando um bocadinho na substância do texto, o percurso teatral acabou por nos levar numa incursão pela memória, sempre passível de traição, dos lugares e das pessoas, de tempos mais ou menos longínquos, mas também nos fez pensar nos caminhos ainda por trilhar, nos planos por fazer e nas surpresas por surgir.

"Abrantes que já cá não moura", de Francisco Goulão | Abrantes

“Abrantes que já cá não moura”, de Francisco Goulão | Abrantes

Por fim, regressámos à Sertã para terminar os Caminhos da Água ao som das guitarras americanadas dos Budda Power Blues e da voz bela e ágil de Maria João, que levaram à escadaria do convento os temas de “Troubled Mind”, disco de 2017.

Haveria muito mais por contar nestes Caminhos da Água e essa é parte da magia: os Caminhos são uma experiência com centenas de perspectivas possíveis, da variedade de espectáculos de diferentes géneros aos diferentes e improváveis palcos, da própria possibilidade de uma experiência distinta em cada acontecimento a todos os lugares de passagem entre as várias cidades – como a Praia Fluvial do Penedo Furado e as suas escondidas e paradisíacas cascatas ou a resiliência da paisagem florestal que vai começando a renascer, depois dos fogos de 2017. Tudo isto faz do projecto um portento cultural que encoraja a descentralização e revela um Portugal que sempre esteve à vista mas que permanecia à espera de olhos que lhe pusessem a vista em cima. Com uma programação gratuita e acessível, o projecto Caminhos não abdica da qualidade e da actualidade dos temas e abordagens artísticas que propõe.

Depois de tudo aquilo que os sete dias de programação deram ao público local e visitante em Alcanena, Minde, Abrantes, Sertã, Vila de Rei, Torres Novas, Ferreira do Zêzere, Mação e Constância, resta-nos aguardar ansiosamente pelos Caminhos da Pedra, que terão lugar em Outubro próximo. Até lá.

Fotografia de Carolina dos Santos



There are no comments

Add yours

Pin It on Pinterest

Share This