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“Céus Negros” de Ignacio del Valle

O voo picado do unicórnio

Ler pode ser um ato compulsivo, irracional, uma forma de puro prazer onde durante horas, muitas, e/ou dias, torna-se numa espécie de meditação, de uma catarse que une leitor, livro, autor, personagens (a ordem é saudavelmente aleatória). Passei por esse estado quando li O Tempo dos Imperadores Estranhos e A Arte de Matar Dragões, os dois primeiros tomos de uma (por enquanto) tetralogia que tem no seu epicentro o antes Sargento, agora Capitão, Arturo Andrade, um dos mais entusiasmantes personagens do género policial, entendido na sua versão mais literária, nascido da mente de Ignacio del Valle, o espanhol nascido em Oviedo.

E se Os Demónios de Berlim, terceiro capítulo desta demanda quase queixotiana, “apenas” serviu para confirmar a genialidade de del Valle, o recentemente editado Céus Negros (Porto Editora) sacia uma longa espera de seis anos e faz as delícias dos mais exigentes apaixonados por thrillers, mas, e acima de tudo, de grandes livros.

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Com a Espanha da década de 1950 como cenário, envolta nos seus muitos fantasmas falangistas, e espetros franquistas, a lamber feridas depois da guerra, Arturo Andrade é chamado a investigar o misterioso assassinado de uma menina nas terras áridas de uma Extremadura sublinhada por um calor sem memória que corrói, conspurca e mata.

A pacata vila de Pueblo Adentro, vizinha da Badajoz natal de Andrade, além de subjugada à lei da resistência anarquista, é também o cenário escolhido para as criminosas ações de uma rede de tráfico de crianças, que conta com a santa colaboração de uma igreja sem escrúpulos, e sedenta por “reeducar” os filhos dos prisioneiros republicanos derrotados na Guerra Civil, que já fez desaparecer mais de 30 mil inocentes crianças. O seu destino, sabe-se depois, é a adoção ilegal e algo ainda pior.

É nesta movediça realidade que se move Arturo, veterano da Divisão Azul, herói de Leningrado e Berlim, mas também dono de um passado assombrado pela deserção, a mentira e a máscara de um combatente republicano que, por um interesse visceral, transvestiu-se de franquista, na peugada de um dos casos mais dantescos que enfrentou. E quanto mais investiga, quanto mais fundo esgravata, mas suja parece a realidade. Resta-lhe valer-se das suas deduções e de uma das melhores armas para chegar à verdade: a tortura.

Enquanto a canícula fere, a narrativa de del Valle serve-se de uma mestria que modela a brutalidade da ação por via de uma contida voz que narra toda a estória. O calor, sufocante, marca o ritmo das frases com uma serenidade imperturbável que, a espaços, da lugar a flashbacks onde o passado tortuoso de crianças e adultos sublinha o seu estatuto de vítimas.

O texto flui, o leitor deixa-se agarrar. As (magníficas) descrições de pessoas, lugares e situações tornam os capítulos dinâmicos, coesos, estejamos a falar de sequências mais emocionais ou episódios repletos de uma ação que procura a solução dos enigmas policiais contidos no emaranhado literário que é Céus Negros, como são, por exemplo, cenas que descrevem a investigação de Arturo e Manolete (sim, ele vive!) no mais sacro mosteiro, uma fuga atribulada depois de um baile que termina em luta de “naifa” em punho ou numa tórrida cena na praia.

Para Ignacio del Valle, tudo importa para contar a tal estória ainda que a identidade do ou dos criminosos seja o menos relevante tendo em conta uma sociedade cuja hierarquia é machista e perversa.

Poderoso exercício sobre uma aventura em que o (anti)herói se debate contra uma «devastadora sensação de incredulidade», e se deixa cair num labirinto de interesses, bodes expiatórios, vícios e corrupção, Céus Negros é um livro poderoso, intenso, que faz o leitor redopiar entre personagens e perspetivas que servem de orientação para descrever um mal sem perdão pois as crianças, e a sua inocência, são, e serão, sempre, o melhor do mundo, ainda que os seus sonhos se possam perder nas asas de um unicórnio.



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