Como Assassinar o Cinema numa Temporada
Há muito que as séries de televisão fazem justa concorrência à Sétima Arte, com orçamentos elevados, sumptuosidade técnica e mestria de argumento. Será este o fim do Cinema?
É certo que a noção de Televisão faz pouco sentido hoje em dia. A Internet dá-nos a possibilidade de escolher o que ver, em qualquer altura, e os aparelhos que temos na sala permitem-nos gravar programas sem muito esforço. Os próprios televisores já nem existem, agora são LCDs ou plasmas, ecrãs flatscreen em alta-definição que se assemelham mais ao velho ecrã de Cinema. O sinal de Televisão também está a mudar e prevê-se que todas as estações estejam a transmitir em alta definição brevemente.
Tudo isto permite uma experiência caseira cada vez mais próxima de uma sala de Cinema e não é por falta de dinheiro que existem cada vez menos espectadores nas sessões; a comodidade de ver um filme em casa supera a qualidade de ver um filme em condições numa boa sala de Cinema. Com ou sem pipocas.
As séries de Televisão são a verdadeira alternativa aos talk-shows e reality-shows de baixo nível que preenchem a programação. As séries têm produções de orçamento superior a muitos dos filmes produzidos recentemente. Se uma série dramática normalmente dura 44 minutos, uma série de comédia ou sitcom cerca de 22 minutos e uma temporada (season) dura, normalmente, 12 a 22 episódios, somamos muitas horas de entretenimento.
Os próprios scripts são cada vez mais próximos de uma linguagem cinematográfica elevada ao extremo; basta pensarmos numa série popular como 24: são 24 episódios de uma hora sempre em tensão absoluta. No fim de uma temporada temos 24 horas que poderiam ser 24 filmes. Essa característica da série de televisão do século XXI, a constante procura pela tensão narrativa a cada episódio, faz com que as séries sejam muito mais imponentes que a maioria dos filmes de Hollywood dos últimos 10 anos.
Basta pensar que uma temporada de 12 episódios de 44 minutos constrói um arco narrativo que, quando bem escrito e interpretado, equivale a muitos filmes com a estrutura clássica de 3 actos. Um determinado conflito pode durar uma temporada inteira, com espaço para conflitos paralelos, personagens extra e muito mais acção narrativa.
As Grandes Produções Norte-Americanas
A série televisiva de grande produção, como é habitual nas cadeias de televisão por cabo Norte-Americanas HBO, Showtime ou CBO, é muitas vezes um grande exercício de argumento que, quando feito com o rigor de um “Six Feet Under” (Sete Palmos de Terra) nos acompanha praticamente a vida inteira. Isto porque as temporadas são anuais, normalmente estreadas no Outono ou no início do Verão, e cinco temporadas equivalem a cinco anos. É muito raro uma série de cinema como “Star Wars” ou “Twilight” durar tanto tempo com tanta intensidade, até porque um filme tem tempos de produção muito mais elevados. É frequente numa série serem realizados 3 episódios ao mesmo tempo. Enquanto uma série de televisão é exibida todas as semanas, um filme vê-se numa tarde e dura apenas cerca de uma hora e meia.
Sem desrespeito para a Sétima Arte, há nas séries televisivas muito mais para oferecer que simples entretenimento de horário nobre. É um desafio escrever tantas horas de enredo. Nos últimos anos foram exibidas várias séries que, pelo seu rigor e esperteza narrativa, evocam os grandes clássicos do Cinema.
“Sete Palmos de Terra”, criada por Alan Ball, é um desses exemplos, uma série de um nível tão perfeito que chega a ser incomodativa; a narrativa entre o sonho e a realidade e as estórias humanas com um carisma surreal são mais que a vida. “The Wire” foi a grande sensação desta década que passou: não há séries assim. A narrativa e fotografia quase documental relatam o dia-a-dia de várias instituições da cidade de Baltimore, nos Estados Unidos da América. O truque da série foi não exercer qualquer direito de superioridade entre heróis e vilões; todas as personagens estão ao mesmo nível, ninguém é Herói, ninguém é Vilão, e mesmo assim existe uma estrutura clássica. Os anacronismos e as burocracias de uma cidade e de um sistema corrupto, os esquemas e as personagens humanas saídas das esquinas mais escuras de uma cidade que é a personificação de todas as cidades modernas. Cirúrgica, inteligente e absolutamente arrebatadora. Mas há muito mais exemplos, “Madmen” é uma valente pedrada no charco com a sua eficácia dramática em descrever a sociedade dos anos 60 de forma sóbria e utilizando muita iconografia visual da época de forma exemplar. “Tell me You Love Me” (inédita entre nós, e com apenas uma temporada) inova pela forma humana com que conta as suas estórias de um grupo de casais e os seus problemas com a intimidade, filmado de forma crua e sem banda sonora.
Vale a pena referir mais séries que, de uma forma ou outra, exorcizam-se do seu lugar na televisão e tornam-se em séries de um culto maior que o culto do Cinema. “Weeds” (Erva) é uma delas, com a sua original estória de uma mãe solteira que vende erva nos subúrbios. A partir da quarta temporada, Weeds transforma-se numa intensa tensão cómica muito perspicaz: esta forma de transformar a narrativa central de uma série que tem uma estória segura e audiência fiel é um golpe de génio e deveria ser observada com mais atenção. No mesmo espectro da comédia dramática temos “Californication” onde o veterano David Duchovny interpreta um papel à medida, um looser de contornos épicos que deambula entre a falta de imaginação para escrever, belas mulheres e muitos copos vazios. A revolução desta série não é só o diálogo ridiculamente poético e natural (a empatia entre os actores é o factor-chave), é também a forma como o sexo é apresentado de forma tão natural como íntima porque na televisão é aceitável mostrar um bocadinho mais de carne, especialmente num canal pago como o Showtime.
Em Portugal: Sempre a Mesma Telenovela
Mas estamos a falar exclusivamente de séries Norte-Americanas? A nossa aliada Inglaterra produz anualmente a sua quota parte no mercado. “Shameless” (exibida na SIC Radical) é uma das mais famosas e o seu humor inteligente e escatológico é bastante eficaz. E em Portugal?
A nossa televisão pública está assente no velho formato novela, e todas as produções de orçamento mais elevado são neste formato. A novela difere da série televisiva de formato Norte-Americano por duas características essenciais:existe apenas uma temporada de muitos episódios diários e a narrativa é esticada de forma a haver em cada episódio de 20 minutos um pequeno pormenor que indique uma possível resolução do conflito estabelecido inicialmente. Outra característica não-essencial é a antevisão dos próximos capítulos em revistas cor-de-rosa.
Desta forma, a nossa Televisão não evolui há vários anos, salvo raríssimas excepções, sem nunca seguir o formato de temporada e muito menos o horário das exibições. Séries são canceladas sem aviso prévio e os horários mudados sem nexo. Os argumentos continuam medíocres, os cenários e iluminação são sempre de gosto duvidoso e as estórias são muitas vezes importações de franchises Sul-Americanos ou Europeus. O que nos salva é um leque de actores com formação clássica em Teatro que a muito custo tentam adaptar-se à incapacidade dos argumentos propostos, tentando evoluir para além da encenação básica tipo Teatro de Revista que é a característica da nossa Televisão. Mas os nossos bons actores são quase sempre preteridos por jovens sem formação ou talento que são escolhidos por via de atributos físicos e pela empatia que possam provocar nos telespectadores – não a empatia própria da personagem. Isto poderia não significar nada se a proporção fosse equilibrada, com tantas e boas escolas de actores e muitos bons exemplos a seguir, mas aqui a excepção é a regra e o que funciona para o espectador é o mau. E isto é apresentado sem mágoa possível, há muito poucos bons exemplos por cá; qualidade simplesmente não é uma palavra do nosso dicionário televisivo.
A questão fulcral é que a evolução tarda em chegar. O problema é muito simples, as elites de direcção são sempre as mesmas desde o fim do Estado Novo e as directrizes iguais. As televisões limitam-se a seguir o mesmo formato de sensacionalismo de mão na anca porque a audiência está formatada para isso: se a televisão não muda, os espectadores também não ficam mais exigentes. Esta questão pode ser alterada com o surgimento de oportunidades a novos autores, jovens, e por uma aposta em descomplexar os velhos formatos que são a imagem de marca das nossas estações de televisão. São também necessários orçamentos e concursos públicos para novos projectos com garantia de produção. Se as estações são espaços fechados com cheiro a mofo e se a Televisão é sinónimo de antiguidade, não há sangue novo que queira atrever-se a criar boas séries de televisão.
Escrever para uma série de televisão é das tarefas mais árduas para um argumentista e para a sua equipa. Desenvolver um enredo que dure 12 ou mais episódios e que se propague por várias temporadas sempre com o mesmo ritmo e novos conflitos baseados no conflito-chave é uma tarefa sobrevalorizada mas muito reconfortante: a audiência agradece. E nós também, os que ainda conseguem ver um bocadinho de televisão. Mas já nem existem subsídios para o Cinema. Para que as boas ideias não fiquem no armário, o essencial é projectar, escrever, e forçar alguma qualidade na nossa velha Televisão.
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Só faltou aquela que é, sem dúvida, a melhor (pronto, a par com "The Wire"…).
"Breaking Bad" é a mais imaginativa e bem feita série em muitos anos e qualquer dos seus 60 episódios vale mais do que 90% do cinema que por aí anda nas nossas salas…