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“Como Queiram”

Shakespeare no centro dos dias de hoje.

A comédia de costumes “Como Queiram” (“As you like it” no original) sobe ao palco do Teatro São Luiz pela mão de Beatriz Batarda, dando vida ao que Shakespeare escreveu sobre tempos que não vivemos, mas onde em tudo reconhecemos a capacidade de adequação à realidade dos discursos de hoje. A intemporalidade da obra do autor é agora recuperada através da excelente tradução de Daniel Jonas que se debruça sobre objectos que pertenceram a uma outra cultura e os insere no centro do nosso quotidiano, num exercício de crítica sobre a sociedade contemporânea e suas consequentes imposições de injustiça e infelicidade.

A peça desenrola-se numa acção contínua de diálogos vivos desencadeada pela personagem Rosalinda que, para evitar o exílio da corte – imposto pelo tio, o Duque Frederico –  foge para a Floresta de Arden com a sua prima Célia e o bobo Tocaspartes. Rosalinda é uma personagem marcada pelo conflito entre o amor que sente por Orlando e o desconforto decorrente da impossibilidade de experienciar livremente este sentimento. Orlando é um jovem que, por sua vez, é igualmente vítima da perseguição do Duque e também ele se irá refugiar na Floresta após ter dado provas de uma inequívoca coragem, característica que não lhe pode ser reconhecida porque a hierarquização da sociedade assim o impõe.

Já na floresta, Rosalinda muda de nome e de sexo para passar a ser o jovem Ganimede e instala-se numa humilde casa com a também reinventada irmã, Aliena. O bobo, personagem que irrompe a peça imediatamente nos primeiros minutos e chega para agitar as consciências em palco e na plateia, irá acompanhar as duas primas ao longo de toda a travessia. Invariavelmente empenhado na representação dos caminhos do burlesco e da satirizarão, vai sublinhando o que há de risível nas  instituições, personagens e situações sociais censuráveis, e faz-nos ter consciência do quão audazes eram estes textos se os inserirmos na época em que foram escritos. Através das suas farsas que significam quase sempre risos à desgarrada ele é um “bobo com conteúdo” que nos observa de um ponto de vista superior e nos oferece soluções banhadas a sensatez sem nunca deixar de personificar o contraponto de a sua existência se traduzir na espontaneidade com que deve divertir o público da corte (que somos todos nós).

Como Queiram©Tiago Oliveira

Também a viver na floresta está um pensador melancólico que prefere a apreciação do belo e da natureza à aceitação da pobreza da condição humana. Através do seu pseudo-intelectualismo vai sublinhando as passagens de cena com leves mas incisivas críticas de ordem social, lamentando a cegueira e a passividade com que vamos existindo. A viver na floresta está também o pai de Rosalinda e a este Jaques vai apelidar de “galo capão” pela passividade com que este aceitou a sua condição de Duque exilado. Esta é apenas uma das muitas expressões fortes com que nos brinda esta personagem de entre as quais é recuperada a inabalável “Todo o Mundo é um palco”, que sugere que todos devemos saber o lugar que nos foi designado e o papel que nos compete desempenhar. Isto porque, apesar de estarmos perante uma criativa tradução do original, a génese da peça continua a ser um texto do século XVII onde se a arte se propõe a representar a vida social de então e, esta segunda, ainda não permitia um olhar livre de preconceitos sobre a sexualidade e o papel que ocupam o homem e a mulher na sociedade. É a partir destas práticas sociais enraizadas que se desenham os princípios de injustiça que conduzem a uma profunda incapacidade de ser feliz, em muito motivada pelos desníveis sociais. Às personagens compete a construção de um outro molde social, mais justo e uniforme, onde a busca pelo amor verdadeiro é o motor e a linha que pode conduzir a novos finais, desta vez felizes.

Esta proposta dramática sobre o amor dança ao sabor de uma banda sonora cuidadosamente escolhida, ou não estivéssemos nós perante a peça mais musical de Shakespeare. Propagam pela sala notas de viola, flauta e até de acordeão, que vão acompanhando meticulosamente os gestos dos personagens na viagem rumo a esta sociedade mais equilibrada. E, se estas notas vão contribuindo e complementando esta viagem, é através de novos e deliciosos pormenores que os risos vêm abrir a porta à reflexão e à avaliação da condição portuguesa actual, dos quais vale ressaltar a cena em que o eremita Jaques canta a tradicional “Oliveirinha da Serra”.

Como Queiram©Tiago Oliveira

Sobre o elenco, é absolutamente excepcional, e merece todos os aplausos que tivermos e levarmos nas mãos. Em cena estão Bruno Nogueira, Carla Maciel, Leonor Salgueiro, Luísa Cruz, Marco Martins, Nuno Lopes, Romeu Costa, Rui Mendes, Sara Carinhas e Sérgio Praia, e em todos reconhecemos um excelente trabalho individual e de equipa sem o qual certamente não teria sido possível reinventar a receita da concepção artística do contexto sociopolítico de um dos maiores dramaturgos de todos os tempos sem nunca lhe roubar o sabor original. Com um sentido cómico irresistível, este é um reencontro com os textos e as personagens de Shakespeare através do qual nos é proposta uma mordaz perspetiva sobre a sociedade contemporânea.

Se o teatro é tempo real, esta peça propõe-se a repensar o significado desta expressão e coloca-nos nas mãos todos os quadros ideológicos e morais do ontem para que se confundam com as nossas expectativas do hoje. Talvez seja hora de encararmos a expressão “Todo o Mundo é um palco” como um oportunidade de devermos, antes, construir os nossos próprios papéis.

 

“Como Queiram” estará em cena no Teatro São Luiz em Lisboa de 14 a 26 de Janeiro e é uma co-produção do Arena Ensemble, do São Luiz Teatro Municipal, do Teatro Nacional São João e A Oficina/Centro Cultural Vila Flor. De seguida andará em digressão pelo país e passará pelo Teatro Viriato em Viseu, pelo Teatro Carlos Alberto no Porto, pelo Centro Cultural Vila Flor e ainda pelo Theatro-Circo, em Braga.   

 

 

Fotografia de Tiago Oliveira

 



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