Conde, Clara e Curtas
Vila do Conde registou o maior número de realizadores consagrados per capita da sua história.
Hauriram os olhos durante uma semana. Viram curtas, longas, nacionais e internacionais, filmes-concerto e vídeos musicais, num ano que ficou marcado pela enorme presença de público e pela qualidade do cinema nacional. O festival Curtas de Vila do Conde, decorrido entre 9 e 17 de Julho no Teatro Municipal de Vila do Conde, trouxe mais uma vez o advento do cinema à rua a quem procura qualidade nos ecrãs públicos, e também a convivência entre cinéfilos.
Tal como disseram, “a crise ficou à porta do Curtas”, e é verdade. A 19ª edição do Curtas Vila do Conde registou mais de 20 mil espectadores e a presença de 70 autores. Bertrand Mandico, Louis Garrel, Pedro Costa, Anca Miruna Lazarescu, Tiago Rosa-Rosso e Kim Holm subiram ao palco para receber os respectivos prémios.
A semana
Logo no primeiro dia, em que a estreia do filme “Estrada de Palha” de Rodrigo Areias estava “hiper-super-lotada”, sentiu-se a adesão do público para assistir à programação que o Curtas tinha para oferecer, contrastando, infelizmente, com a maioria das salas de cinema portuguesas.
O início do festival foi marcado pela estreia portuguesa de Rodrigo Areias e pela exibição da retrospectiva de Corneliu Porumboiu, com duas longas-metragens – “Police, Adjective” e “12:08 East of Bucarest” – e três curtas “Pe Aripile Vinului”, “Calatorie la Oras” e “Visul Lui Liviu”. O cineasta romeno premiado em Cannes mostra-nos um país que não é, cultural e socialmente, tão distante do nosso, dentro de uma linha de humor muito própria de Corneliu Porumboiu que o próprio não considera humor, mas tão-só a forma de apresentar o seu trabalho.
Foi uma semana atribulada. Existiram sessões de Panorama Nacional, Internacional, Competição Nacional, Internacional e Experimental, Curtinhas, festas, cerveja e muita cafeína para aguentar, porque não vale dormir na sala. Projecções de Pierre Clémenti, Bruce Conner e Jem Cohen na Sala 2. David O´Reilly, Ken Jacobs, Spike Jonze, Harmony Korine e Thom Andersen também estiveram presentes nos ecrãs desta edição. Thom Andersen ganhou o Prémio Documentário com “Get Out of the Car”, e Ken Jacobs o Prémio Competição Experimental com “The Pushcarts Leave Eternity Street”, um trabalho diga-se cansativo para quem esteve sentado a assistir, uma espécie de strobe cinematográfico com a duração de 13 minutos. Um suplício para quem não frequenta as melhores discotecas do país.
Nacional
Se em edições anteriores havia mesmo quem afirmasse fugir da competição nacional, finda a 19ª edição do festival, concluiu-se que este ano só houve razão para ficar dentro da sala dada a visível e notável melhoria do cinema português. “Numa opinião muito pessoal não vou dizer que foi o festival em que vi melhores filmes, mas foi sim o festival em que vi melhores filmes portugueses, muitos e bons filmes” afirma Jaime Neves, espectador presente desde a primeira edição do Curtas Vila do Conde.
Tiago Rosa-Rosso apresentou o seu primeiro filme, “Peixe-Azul”, uma curta que trouxe a genialidade do recém-realizador e que conta o quotidiano de dois “putos” que vagueiam por Lisboa à procura de motivos para passar o tempo. O calão da capital portuguesa é enaltecido e dá um carácter genuíno ao filme. Ganhou uma Menção Especial.
Bernardo Nascimento ganhou o Prémio Melhor Fotografia com filme “North Atlantic”, uma co-produção entre Portugal e Inglaterra que conta a história de um aviador que se aproxima da Ilha do Faial, nos Açores.
David Doutel e Vasco Sá apresentaram a animação “Sapateiro”, Rita Figueiredo “O Silêncio de Dois Sons”, Raquel Martins “Quote Story” e Pedro Resende “Maybe…”, um trabalho semelhante ao do também estudante de cinema em Austin, Nuno Rocha, que no ano passado apresentou “Vicky & Sam”.
Destaque também para os filmes portugueses que ressaltam realidades de cariz luso-africano como o vencedor do Melhor Filme Competição Nacional “O Nosso Homem” de Pedro Costa e “Nuvem” do realizador luso-suíço Basil da Cunha, curta seleccionada para Quinzena dos Realizadores de Cannes. Ambos contam histórias de bairros marginalizados, com personagens que tanto falam português como crioulo e passeiam à procura de uma vida melhor. Têm estéticas e linguagens próprias de guetos, autênticas e duras, mas apresentadas por ambos realizadores de forma enternecida e delicada.
Na competição Take One! ganhou a curta “Artur”, de Flávio Pires, estudante da Universidade Católica. “Finalmente veio um prémio para as Escolas das Artes da Católica, pois já merecia”, diz Jaime Neves. É documentário ficcional, sobre Artur Ramadas, um realizador inventado pelo estudante da Universidade Católica do Porto.
Internacional
O preto-e-branco cativou. “Boro in the Box”, de Bertrand Mandico, foi o grande vencedor da Competição Internacional e, Jaime Neves, director do festival Black & White e professor na UCP, mostra-se muito contente porque o prémio Melhor Competição Internacional e Prémio Ficção foram atribuídos a filmes a preto-e-branco, um sinal de que o género não está “obsoleto” e confessa que sai do festival “com o ego elevado”.
“Boro in the Box” é caracterizado por uma estética muito cuidada e surrealista que “curiosamente pega numa referência polaca, uma vez que há uma grande ligação entre o cinema francês e polaco. Tem umas questões narrativas imperfeitas, porque nada é perfeito, mas é muito bem feito. Em termos de leitura semiótica era o melhor”, analisa Pedro Farate, recém-licenciado em Tecnologias de Comunicação Audiovisual.
A maioria dos realizadores e cineastas premiados tem uma carreira já congruente e famosa; “não digo que o Boro in the Box não deveria ter ganho, o que acontece é que por vezes os vencedores do Curtas surpreendem muito, porque parece que há problemas em atribuir o prémio a uma curta que não é tão conhecida”, comenta Farate.
Hilário Amorim, júri do evento Shortcutz, também esteve presente e considera que o “Boro in the Box” é um filme “soberbo, é trabalho cheio de metáforas e muito belo. Foi um prémio bem atribuído”.
Os premiados deste ano seguiram as expectativas do público; “foi o ano em que mais concordei com os vencedores, à excepção de Petit Tailleur de Louis Garrel, que penso ser um filme que não traz originalidade, principalmente vindo de alguém que se espera muito mais” diz Farate.
Falando em disappointments, “Notre jour Viendrá” não perfilhou o segmento de ilusão do festival. Pedro Farate compreende que seja um cinema diferente “mas achei mau o filme. Nota-se que é o primeiro filme de Romain Gavras, mas acho que o imaginário dele é melhor para os videoclips. O filme das 18h30 de Domingo, “Verano de Goliat”, apesar de ser um pouco parado, achei que era muito mais interessante. É visível que o cinema dos nomes mais consagrados por vezes pode ser um fiasco”, acrescenta Farate.
“Apele Tac”, o filme de romeno com co-produção alemã de Anca Miruna Lazarescu, ganhou o Prémio do Público e o RTP2 Onda Curta. “Quando vi o filme senti que por momentos não estava ali sentado. É um filme que agarra o espectador e acho que foi um prémio muito bem atribuído. Não é normal o público atribuir um prémio a um filme sério, normalmente recai sempre em filmes divertidos ou de comédia, o que provou a maturidade do público do festival que não se deixou levar por um filme mais light”, comenta Jaime Neves.
É o filme que funciona melhor do ponto de vista narrativo e lida com uma questão interessante, que é a liberdade. Na opinião de Pedro Farate tem apenas um defeito: “vi o filme duas vezes e na segunda o filme não acrescenta muito mais”.
Ainda, Jorge Quintela, director de fotografia do “Estrada de Palha” e concorrente do Curtas com “O Amor é a Solução” para a Falta de Argumento, achou que “Apele Tac” tem uma linguagem demasiado “formal, contida e pouco arriscada” dentro do cinema romeno, também porque é uma co-produção alemã e terá “condicionado o filme” dando-lhe um lado mais “racional”.
O balanço final foi, evidentemente, muito positivo, a programação do Curtas continua a surpreender. “Gostei do festival e vi bons filmes” diz Pedro Farate.
Há quem procure o festival para aprender de uma forma mais directa, aproveitando a presença dos autores para tirar dúvidas ou colocar questões. “Continuo a achar que faz falta um espaço de discussão. Penso que o festival promove pouca interacção entre os convidados e o público. As sessões são muito em cima das outras e não há tempo para relaxar e absorver o filme. E precisamente por não haver esse tempo entre as sessões é que não existe espaço para os debates. Não há uma facilitação de contactos. Acho muito mais interessante os realizadores subirem ao palco depois do filme para receberem as reacções do que antes para apresentar o filme”, confessa Farate.
Contexto histórico e local
As dezanove edições do Curtas Vila do Conde conferem um posicionamento forte ao festival no panorama do cinema em Portugal. É um evento que no início “estimulou a produção de curtas no país” e fez mesmo com que o Instituto Português de Cinema “começasse a perceber a importância em atribuir financiamento ao cinema em pequeno formato”, comenta Hilário Amorim, que não perdeu uma única edição do Curtas.
Quando surgiu o festival, não havia “praticamente produção de curtas em Portugal”. Antigamente, “quando alguém queria ser cineasta, partia logo para uma longa-metragem, não havia a possibilidade de entrar na área através de curtas-metragens e de pequenas experiências”, refere o cinéfilo.
Ainda, Vila do Conde é uma cidade que, pelas suas características – pequena, banhada por um rio e com um centro histórico cuidado, torna-se um local excelente para receber os convidados, em que há mais concentração, podem passear e passar um tempo agradável. Numa grande cidade as coisas dispersam e há mais distracção. “O festival foi importantíssimo para dinamizar Vila do Conde e recuperar o Teatro Municipal”, acrescenta Amorim.
Em suma, podemos apenas acrescentar que aguardamos pela próxima edição do Curtas Vila do Conde, que já tem data marcada, e acontecerá entre 7 e 15 de Julho de 2012. Sem sombra de dúvida, os vinte anos serão um motivo acrescido para contemplar a qualidade do evento e a programação encantadora que tem mantido ao longo da sua existência.
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