“Coração tão Branco” | Javier Marias
A dissecação da instituição matrimonial
Madrileno de gema, Javier Marias é um dos mais importantes escritores europeus da sua geração que, para além da sua veia romancista – é autor de livros como “O Teu Rosto Amanhã” e “Homem Sentimental” -, acumula as funções de cronista e tradutor.
Vencedor de vários prémios a nível internacional, Marias tem obras publicadas em mais de cinquenta países e em quarenta idiomas diferentes, tendo vendido mais de seis milhões de livros em todo o mundo.
“Coração tão Branco” (Alfaguara, 2013) é o mais recente título do espanhol a chegar a Portugal sendo, para muitos, um dos seus melhores e mais ambiciosos romances, arrebatando importantes galardões como o Premio Nacional de la Critica, em Espanha, o IMPAC Dublin Literary Award, na Irlanda e o Prix l’Oeil et la Lettre, em França.
Neste livro, Javier Marias analisa os lugares-comuns da peculiar instituição que é o casamento, assim como os segredos e eventuais traições que surgem ao longo da sua existência. Um dos seus personagens centrais é Juan, um afamado tradutor que divide a vida entre a sede das Nações Unidas de Nova Iorque e Haia, passando períodos de seis a oito semanas em cada desses destinos. Também tradutora, Luisa, a sua noiva, encontra-se em Madrid a tratar da casa que servirá de lar para o casal.
Na ausência de Juan, Luisa desenvolve a sua relação com Ranz, o seu enigmático sogro e carismático negociante de arte que, apesar de septuagenário, não perdeu um inato charme que o levou a casar três vezes, ainda que os destinos das suas duas primeiras ex-mulheres estejam envoltos de algum negrume. Se a sua primeira esposa morreu em circunstâncias misteriosas, a segunda, Teresa, suicidou-se pouco depois da lua-de-mel durante um almoço de família.
Apesar da proximidade entre a sua mulher e o seu pai, Juan nunca nutriu grande empatia pelo seu progenitor, mostrando grandes reservas no que toca à relação entretanto desenvolvida entre Luisa e Ranz. A par disso, as recordações da morte da mulher que fora casada com Ranz antes da sua mãe levantam muitas dúvidas, e a tentativa de descobrir esse segredo bem guardado vai suscitar em Juan várias dúvidas em relação ao seu próprio e recente casamento, que provocou no seu espírito dúvidas face à inadaptação do seu novo estado civil.
É o fantasma do passado que mais atormenta a mente de Juan, que teima em não aceitar e entender o facto de o seu pai precisar de casar três vezes para conseguir ter um filho, no caso ele próprio.
Neste romance hipnótico em que são os segredos e as não-revelações a ditar o propósito da uma narrativa carregada de suspeitas e traições, Javier Marias especula e analisa as curiosidades do matrimónio, aproveitando para extravasar filosoficamente o somatório das várias camadas que resultam nas e das relações interpessoais.
Para além deste intrincado e interessante enredo, o maior trunfo de “Coração tão Branco” é o fantástico estilo literário de Marias que, através de frases longas e múltiplas orações, oferece uma escrita lânguida que, apesar de uma aparente “redundância” e repetição, agarra em definitivo a atenção do leitor. Esta peculiaridade circular revela-se determinante na perceção de verdadeiro significado quando se atinge o contexto certo. Exemplo disso é a natureza confessional da narrativa de Juan que, através de um encadeamento de pensamentos, se transformam de inócuos em essenciais e decisivos.
De certa forma, estamos perante um romance que aborda a natureza das relações e como o amor pode ser a chave que vai revelar um segredo, apenas compreendido e desatado com um entendimento e consentimento mútuo.
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