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O Homem é uma Máquina é um Homem – 2

Continuamos a análise do Cyberpunk no cinema, desta vez reflectindo sobre os filmes Ocidentais, da Europa até Hollywood. Filmes como "Blade Runner" foram marcos na história do Cinema, tornando-se tão imortais como as suas estórias, influenciando até os Japoneses tanto fisica como psicológicamente.

O Japão pode produzir fantásticos e obsessivos filmes de ficção científica que troçam da realidade e exploram os limites da consciência humana, mas o Cinema Ocidental, Europeu e Norte-Americano, também têm o seu legado de inspiração distópica e punk. É notória a influência que “Blade Runner” provocou no cinema, não só pelo seu primor visual (e pela gabardina de Deckard), mas também porque foi o principal impulso para a escrita de “Neuromancer”, de William Gibson, o primeiro romance Cyberpunk. Falar de romance parece-me importante pois a estética noir que o género apropriadamente inspira é inteligentemente romântica. Mas antes de “Blade Runner” há outras manifestações de realidades distópicas e homens máquina que lutam contra a realidade e contra o sistema, com ou sem gabardina.

O Expressionismo alemão dos anos 20 e 30 foi prolífico em filmes surrealistas e estilizados, muitas vezes explorando os limites da condição humana e da realidade, provocados por uma necessidade de uma nova afirmação artística. Fritz Lang foi uma das referências deste expressionismo e em 1927 oferece-nos “Metropolis”. A estória de uma sociedade distópica e autómata, que explora a crise social entre os trabalhadores e o patronato num luxuoso e vibrante mundo de ficção científica, arrepiante e absolutamente influencial. O impacto visual de “Metropolis” é tão fulcral que continua a influenciar, mesmo inconscientemente, o cinema moderno. Os temas que “Metropolis “explora têm total ligação com o Cyberpunk dos anos 80: a sociedade distópica e capitalista, extremamente tecnológica, a revolta social, a arquitectura claustrofóbica das cidades, o homem e a máquina.

30 anos depois e já após o mundo ter recuperado da ressaca económica e cultural da Segunda Guerra, o cinema pode dar-se ao luxo de recuperar um certo virtuosismo artístico. As revoltas sociais, a urgência de filmar novas tendências e uma nova geração de jovens irrequietos dão origem às novas vagas dos anos 60. Jean-Luc Godard é o cineasta mais irrequieto do período, e em 1964 roda “Alphaville”, um filme de ficção científica noir passado num futuro/presente distópico. Lemmy Caution veste uma gabardina, fiel à herança do film noir Americano.

Mas foi outro Francês, Chris Marker, quem chegou mais longe na fusão do estilo com o homem, com a máquina e com a realidade distorcida do seu “La Jetée” em 1962. Um filme que é uma espécie de fotonovela narrada pelo protagonista. Após a Terceira Guerra Mundial poucos humanos sobreviveram e os cientistas investigam o teletransporte como forma de voltar atrás no tempo e perceber o que aconteceu. O protagonista é escolhido para o teste, um homem marcado por uma visão de infância, por uma mulher num aeroporto, por um momento que não consegue associar no tempo. As sequências fotográficas dançam num glorioso preto e branco e arrepiam os sentidos na sua sucessão de realidade versus irrealidade, e muitos dos temas e visuais do Cyberpunk estão presentes aqui, como que antecipando a estética. Originalmente, La Jetée era visto como complemento a “Alphaville” de Godard, por ser uma curta metragem.

La Jetée é revisto no mais recente “12 Macacos” (12 Monkeys) de Terry Gilliam. Pegando na estória original do filme de Marker, Gilliam constrói uma narrativa mais linear e visualmente mais próxima da estética do Cyberpunk, com as suas cidades destruídas e a tecnologia emergente. Estes dois filmes complementam-se, embora não esteticamente, como se o original de Marker pedisse uma exploração mais longa da sua narrativa.

Também nos anos 70 há manifestações de uma possível realidade Cyberpunk, THX-1138 de George Lucas explora a tecnologia e o controlo da população com visuais arrojados, Laranja Mecânica de Stanley Kubrick explora a distopia e a violência, e o primeiro Alien de Ridley Scott oferece-nos visuais e corredores claustrofóbicos numa luta de sobrevivência.

Mas foi em 1982, dois anos antes de “Neuromancer”, que “Blade Runner” nos dá a conhecer a verdadeira estética Cyberpunk. Um filme tão influente no Ocidente como no Oriente, onde a distopia e a fusão do homem com a máquina têm o seu auge teológico. O ritmo e a luz que conduzem o filme são quase que um manual de normas para o Cyberpunk, e os cenários, as roupas e a arte neo-retro vão continuar indefinidamente a marcar todo o Cinema. William Gibson deve ter visto “Blade Runner” umas 10 vezes antes de escrever o seu “Neuromancer”. Mas não podemos esquecer que foi Phillip K. Dick quem começou tudo, quem nos deu o romance original, quem lutou contra as realidades paralelas e os mundos distópicos e os anti-heróis carrancudos e azarados, os andróides e as cidades poluídas e sem esperança.

Os anos 80 são o auge do Cyberpunk, não só como movimento literário mas também como influencia de inúmeros filmes que surgiram na época. “Terminator”, “Robocop”, ou “Brazil”, por exemplo. Por vezes parece difícil de dissociar a estética desta década alienada pela emergente tecnologia e pela a gula do futuro urgente. Nos anos 90 surgiram outros filmes que, não tão rígidos na aproximação à estética, continuam o legado deixado pelo movimento. “Hardware (M.A.R.K. 13)”, uma pequena pérola oferecida por Richard Stanley, “Totall Recall”, também inspirado numa estória de Phillip K. Dick, “Strange Days” de Kathryn Bigelow, e “Dark City” de Alex Proyas, para citar só alguns. É também a década que vê nascer outro marco do Cyberpunk, o anime “Ghost in the Shell” de Mamoru Oshii – um homem obcecado pela condição humana e pelas realidades paralelas (uma encarnação de Phillip K. Dick, obviamente).

E é também a década de “Matrix”. Quer dizer, “Matrix” é um produto dos noughties mas o primeiro filme surge no virar do milénio. “Matrix” foi essencial na banalização da tecnologia do bullet time, mas também originou uma certa tendência em discutir os filmes sobre um ponto de vista filosófico e metafísico. “Matrix” é um bom filme mas é um produto fraco, uma caldeirada de influências roubadas sem pudor a outros filmes, de “Vertigo” a “Ghost in the Shell”, e a sua tão falada filosofia da realidade que não é realidade já havia sido explorada por inúmeros autores 50 anos antes.

Bem mais interessante é “Aeon Flux”, a série animada não a adaptação insonsa. Peter Chung criou um magnífico e absurdo espectáculo de irrealidade bondage, visualmente arrebatador, onde a realidade não é mesmo real, e o mundo é alegremente distópico e corrupto, dividido entre duas facções quase religiosas.

A Wired pode ter assassinado o Cyberpunk em 1993, mas a evolução do género vai além da estética e da forte temática dos futuros distópicos e altamente evoluídos onde a população vive massacrada pela overdose de tecnologia e procura refugiar-se noutra realidade paralela. É isso que faz o Cyberpunk sobreviver intacto até aos dias de hoje, pois a cada década vivemos mais dependentes da tecnologia e cada vez mais a sociedade é um poço de corrupção e o sistema é sujo, oprimindo a evolução natural, fazendo com que a loucura seja uma solução e onde a internet é, por enquanto, a nossa manifestação mais livre de ligação com o mundo, sem barreiras. Não que hajam certezas, mas o Cyberpunk transformou-se em metafísica e deixou de ser um género. É cada vez mais uma realidade, aliás, uma das realidades que podemos escolher.



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