Daft Punk | “Random Access Memories”

Daft Punk | “Random Access Memories”

Acompanhamento ininterrupto ou acesso interdito à redenção cósmica

Hype: uma faca de dois gumes que os artistas hoje em dia são obrigados a manipular com a mesma veemência demonstrada em estúdio ou em palco, sob a pena de verem a sua música devassada no próprio acto de revelação. Dificilmente este ano fomos inundados com maior frenesim do que aquele erigido pelo regresso dos Daft Punk aos álbuns de originais, oito anos depois do pouco celebrado “Human After All”. Nem David Bowie conseguiu tamanha proeza e foi apenas necessária uma pequena antevisão do primeiro single para incendiar Coachella e o ciberespaço. No entanto, na era da redes sociais e dos “críticos de cadeira”, cada vez menos chances são dadas a álbuns que não correspondam a expectativas ou exigem à partida um maior investimento por parte daqueles que os ouvem.

Felizmente a primeira dessas condições é vastamente ultrapassada. “Random Access Memories” é um disco soberbo e propositadamente  requintado, com uma produção exímia e assente em sedimentos sonoros que reclamam desavergonhadamente uma apreciação holística. É um álbum raro na sua circularidade e integridade num mundo regido por playlists e músicas que individualmente necessitam de possuir um apelo instantâneo para satisfazer a audiências tão estoicamente desinteressadas. No entanto esse é um encanto fugaz que os Daft Punk tão maquiavelicamente renegam. Existe uma linha narrativa e sonora ao longo de “Random Access Memories” que exige manifestamente ser acompanhada ininterrupta, sob a pena de acesso interdito à redenção cósmica.

A inaugural «Give Life Back to Music» faz imediatamente a ponte do passado dos Daft Punk com o funk electrónico que governa todo o disco, decididamente definido pela guitarra de Nile Rodgers, cuja influência enquanto mentor dos Chic é um dos motores do álbum e reproduzida novamente em «Lose Yourself to Dance» e «Get Lucky». Esta última já é conhecida até pelos maus incautos e é particularmente irresistível: nada nela – ou no disco em si – é verdadeiramente revolucionário, mas esta familiaridade pós-moderna cedo evolui para uma outrora abandonada sensação de plenitude maior na entrega à Música. Esse doce reconforto na reinvenção é subjacente em «Doin’ It Right», o mais surpreendente e efusivo dos temas de “Random Access Memories”, celebrando a reunião dos Daft Punk com Panda Bear, uma dos mentores dos aclamados Animal Collective. Uma parceria insólita que consolida o encanto disco do duo francês com a euforia contagiante das aventuras mais pop da banda indie  – a melhor canção de Verão deste lado de «My Girls» (do saudoso “Merryweather Post Pavillion”).

Logo em «The Game of Love» é notório que a paisagem sonora do duo mudou radicalmente, bem como o intuito principal de proporcionar uma reacção imediata e expontânea. Existe aqui algo intangível que é dolorosamente nostálgico, de complicada difusão, capaz de provocar um desgate emocional inesperado e deliberadamente artificial. Estes sentimento tão inexplorados em música de dança são igualmente espelhados na introspectiva e plácida «Within» ou em «Instant Crush». Esta última é uma ode aos anos 80 com um quase irreconhecível Julian Casablancas, mascarado pelo mesmo vocoder robótico que é a imagem de marca das vocalizações de marca Daft Punk. No entanto surgem aqui traços humanos fazem evocar um Pinóquio metálico a descobrir a amargura que desponta do desapontamento do amor criacional.

Em «Touch» chega-se ao ponto central (e fulcral) do disco, um lamento kitsch exacerbado e sobre-humano, operático num jeito sumptuosamente barroco mas com uma ressonância emocional estrondosa. O que não surpreenderá aqueles que idolatram Paul Williams pelas partituras do demente/genial “The Phantom of the Paradise”, um musical de culto oriundo dos anos 70 e da autoria de Brian De Palma. Sendo esta primeira metade do disco dominada por incontroláveis laivos de melancolia, a segunda oferece a luz para iluminar este piramidal lado negro da Lua. Desdobra-se em cores que inundam temas como a onírica «Beyond» ou a totalmente instrumental «Motherboard», uma mescla hipnotizante de bucólicos arranjos orquestrais contrapostos pela industrialização renovadora assinalada pelos elementos electrónicos mais acutilantes de todo o álbum.

Sendo que foram os Daft Punk a suscitar a difusão da EDM com o ainda hoje revolucionário “Discovery”, é irónico que ofereçam em “Random Access Memories” uma contra-reacção a eles mesmos. Ao ressuscitarem a música disco nos seus próprios termos – e plena de um vigor apenas possibilitado pelo toque humano dos diversos músicos, instrumentistas e colaboradores – revigoram instantaneamente um género outrora desprezado e elevam a realidade da audacidade por detrás dos seus pioneiros. Um deles tem um tributo digno de antologia em «Giorgio by Moroder»,  que soleniza um dos primeiros grandes inovadores da música popular predominantemente electrónica. Aqui somos levados pela voz do próprio Moroder em modo palestra a relembrar a sua génese e, ao longo de quase dez minutos, vai-se  ilustrando a história da (verdadeira) música de dança em variações tão desconcertantes quanto soberbas. O final chega em jeito de êxtase total, demasiado estimulante para poder ser processado pelos terminais nervosos de uma só vez. Esse momento só é ultrapassado na expansiva «Contact», tremenda faixa de encerramento do disco e portentora de um crescendo que acredita sozinho conseguir mudar o sentido sob o qual se move o Universo.

Em «Beyond» declama-se “beyond dreams, beyond life, you will find your song”. Os Daft Punk, neste inocente mas sóbrio testamento de tempos que querem e precisam ser mudados, parecem ter definitivamente encontrado a sua.



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