“Desde a Sombra” de Juan José Millás
O mordomo fantasma
No início do mais recente livro do jornalista e escritor (ou escritor jornalista?) valenciano Juan José Millás, um dos personagens, no caso o onírico apresentador de televisão Sergio O´Kane, pergunta a Damián Lobo, o nosso (anti)herói, com que peixe se identifica mais. Perante as opções tubarão ou sardinha, a resposta surge soturna, ensimesmada. «Não sei, talvez com a moreia», responde Lobo.
E é essa a descrição possível para um dos melhores personagens saídos da cabeça criativa e um pouco esquizofrénica de Millás. Lobo é um homem confuso, escondido de si próprio, que desde a perda do emprego se desmoronou refugiando-se, qual moreira, nos mais recônditos lugares onde deambula. Um dia, nesses passeios sem destino, dá consigo numa feira de antiguidades e acaba por esconder-se dentro de um armário depois de realizar um pequeno furto.
Incapaz de sair de dentro do antigo móvel, é levado para a casa de Lúcia, Fede e María, mãe, pai e filha que compõem uma (a)normal família de classe média. Damián acaba por fazer do armário o seu refúgio de felicidade, um esconderijo perfeito para alimentar o seu desejo voyeurista e conseguir reconquistar um sentimento que julgava perdido dentro de si: a vontade de viver. Nem que a mesma se expresse por via das mais vulgares tarefas domésticas ou de uma inesperada cumplicidade.
Livro curto mas denso e intenso, “Desde a Sombra” (Planeta, 2016), reflete a solidão através de um expressivo delírio do sentido de realidade e assume-se como uma crítica velada ao capitalismo e à chamada “tv lixo”, uma “expressão comunicativa” infelizmente muito usual nos nossos dias. Também as relações familiares, umas mais disfuncionais que outras, nalguns casos numa perigosa trajetória incestuosa (onde não falta uma irmã chinesa com apetência a atribuir alma ao pénis), são objeto de reflexão, assim como as já habituais análises psicanalíticas. A união de tudo isto está a escrita superlativa de Millás, uma espécie de exercício siamês entre emotividade e sobriedade, entre o real e o fantasmagórico, cujo terreno de ação tem uma dupla neutralidade.
Estão assim, felizmente, reunidos todos os elementos que fazem com que os livros de Millás sejam especiais, únicos, escritos e lidos numa fronteira bidimensional, no caso, dentro e fora de um armário. Como aliados estão os habituais e diferentes pontos de vista narrativos, os desdobramentos de personalidade dos personagens e um sentido de humor inteligente, predicados esses bem vincados noutras obras do autor, principalmente no anterior “A Mulher Louca”.
Além da função de escritor, ou contador de estórias, Millás torna-se num amigo e amante absoluto das palavras e faz com elas desarmantes malabarismos que dão origem a narrativas inquietantes que envolvem o leitor como se de um estranho, diferente e envolvente abraço se tratasse.
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