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Deus Pátria Revolução

Teatro Carlos Alberto, 23 de Abril de 2009

Em Portugal não é habitual a produção de objectos de teatro musical como este. Uma fina ironia percorre toda a peça, confrontando permanentemente o público com o seu entendimento e memória histórica. Utiliza como matéria-prima, simultaneamente (e, frequentemente, de um modo sobreposto e/ou alternado) melodias de canções e hinos nacionalistas, proto-fascistas, revolucionários, religiosos e desportivos.

A sequência não é cronológica, nem respeita diferenças ideológicas; as referências surgem aqui misturadas, baralhadas mesmo, num permanente saltitar de repertórios musicais de origens diversas. Este não é, contudo, um confronto violento ou sequer excessivamente vincado; pelo contrário, em “Deus.Pátria.Revolução” a dupla de dramaturgos Luís Bragança Gil (que também é o autor e o responsável por orquestrações e direcção musical) e Luísa Costa Gomes optam pela construção de um quadro musical aparentemente coerente e harmonioso, que joga precisamente com as semelhanças de forma e registo (musical), mais do que de conteúdo (temático, ideológico). Embora tenha alguns momentos desconcertantes, sobretudo no primeiro terço da peça, o resultado final acaba por ser muito bem conseguido – mas regressemos ao início desta peça-musical.

A casa estava cheia para assistir à curtíssima passagem de “Deus.Pátria.Revolução” pelo Porto (apenas três dias). Em pano de fundo: as comemorações de mais um Dia da Liberdade.

Entramos na sala e somos confrontados (ainda estão as luzes gerais acesas) com uma aula de ballet ao som de algumas variações de «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades». Baixam as luzes e entra em palco uma banda típica de fanfarra, entoando «Portugal» (que, mais adiante se transforma em «Parto sem dor», de Sérgio Godinho e, depois ainda, no Hino do Europeu 2004!). Começa então a construir-se uma teia de sucessivos quadros que, partindo de imagens clássicas ligadas ao «Portugal dos Pequeninos» (numa insana colagem de marchas do Estado Novo como «Pátria», «Lourenço Marques», «Canção de Angola», «Coimbra é uma lição», «Hambanine», etc.), evolui para um medley de hinos que remetem para um certo imaginário colectivo Português (do «Desfile da Mocidade Portuguesa» ao «Filhos do dragão», passando pelo «Grande coral da Pátria» ou «Somos Livres»), numa amálgama nacionalista-futebolista-revolucionária em que, mais do que sobressaírem os contrastes, destacam-se justamente as semelhanças musicais, que tornam perfeitamente plausível e até estranhamente “coerente” esta mistura de referências.

A ironia de “Deus.Pátria.Revolução” tem alguns momentos especialmente bem conseguidos em certos quadros apresentados, como o da “Pousada da Fortaleza de Peniche”, numa referência clara à sede da PIDE transformada em condomínio fechado (na peça, é a antiga prisão do Estado Novo que se transforma em hotel de charme, servindo a memória histórica e o valor patrimonial do edifício como um elemento de valorização social do espaço). Na sequência final da peça, que remete já para um ambiente completamente pós-25 de Abril e da actual “crise”, recuperam-se algumas das mais clássicas canções revolucionárias da época para, num registo já mais corrosivo (ouvem-se «Venha cá senhor burguês» e «Marcolino», de Fausto, «Até à vitória final» e «A cantiga é uma arda» do GAC ou «Cuidado com as imitações» e «Que força é essa» de Sérgio Godinho, entre tantos outros). Para nosso reconforto, dá-se então uma certa clarificação de posições no final da peça, libertando-se de uma excessiva ambiguidade (quase que roçando numa certa indiferenciação entre direita e esquerda, entre o Estado Novo e o PREC) que marcou o início da peça, por vezes incómoda. Este momento constitui, portanto, a ocasião em que os autores tornam claras as suas intenções.

Finalmente, destaque-se ainda o papel fundamental que assumem em “Deus.Pátria.Revolução” o conjunto de de excelente músicos e cantores (muitos deles com uma clara veia lírica), elementos-chave para que o resultado final desta peça de teatro musical seja bastante interessante e, sobretudo, desafiante.

“Deus.Pátria.Revolução” é sobretudo uma oportunidade para nos questionarmos, a partir de alguns estereótipos da cultura de massas em Portugal (sem grandes distinções entre as abordagens mais eruditas, as mais populares e as nitidamente comerciais), acerca da relação da arte com o seu tempo histórico e, sobretudo, que funções desempenha quando colocada ao serviço das ideologias.

Fotografia de Mário Sousa



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