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DOSSIER ALKANTARA : Thomas Walgrave, o adeus do programador

“O afeto entre um programador e um artista é uma coisa muito complexa e forte”

Fomos conversar com Thomas Walgrave que se despede este ano da direcção do Festival Alkantara. Foi no fim dos anos 80 que Walgrave, cenógrafo e desenhador de luz, conheceu Mark Deputter, programador belga, tendo acompanhado o início da sua ligação com Portugal e com Mónica Lapa. Walgrave foi membro fundador dos Tg STAN, grupo teatral belga que se tornou famoso pela sua aposta no trabalho de improvisação e numa criação colectiva que prescinde do encenador e enfatiza o papel do actor enquanto criador do espectáculo. Os Tg STAN vieram a Portugal pela primeira vez em 1997,  a convite de Jorge Silva Melo, então programador da área de teatro no CCB, que tinha ficado curioso com aquilo que Deputter lhe contara sobre este grupo. Vieram fazer cinco espectáculos diferentes e um workshoop ( nele participaram alguns nomes de uma nova geração de actores, como Pedro Penim do Teatro Praga e Tiago Rodrigues que acabou por desenvolver uma relação muito intensa com o grupo belga).

eu sinto que hoje é completamente diferente dos anos da Troika e é impressionante como isso passou para a vida das pessoas

Quando chego ao espaço Alkantara para a entrevista encontro Thomas Walgrave em cima de um escadote a afinar projectores para a apresentação da programação do festival.  Subimos ao piso superior deste hangar, onde trabalham as áreas de serviços, a produção, imprensa, logística. O ambiente respira tranquilidade, umas seis ou sete pessoas estão compenetradas nos seus postos, olham-me afávelmente, saúdam-me, sigo até um pequeno gabinete, sala de reuniões, tem uma janela com uma vista ampla,  é lá que conversaremos. Ainda não conhecia pessoalmente Thomas Walgrave. Tenho acompanhado como posso o Festival, conheço o Alkantara ainda era Danças na Cidade, ainda com essa mistura poderosa e rara de alegria, criatividade e capacidade de organização que era a Mónica Lapa, mas ainda não o conhecia a ele. E quando começámos a conversar percebi, ou especulei, porquê. É que ele é um homem calmo, de olhar simples, um pouco tímido, que gosta visivelmente mais dos bastidores do que da ribalta. Dar-me-á conta várias vezes ao longo da conversa que para ele o trabalho do programador é indissociável do acompanhar, do estar perto dos projectos e dos seus processos de trabalho:

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“- Eu nunca tinha programado antes de chegar ao Festival Alcântara, um festival que sempre teve esta dinâmica do encontro entre os vários artistas nacionais e internacionais. Mais do que um criador apresentar a sua criação x ou y, tenho curiosidade em seguir a linha de um determinado artista ou grupo. Eu acho que aquelas linhas são mais importantes do que os pontos.” É na criação de uma relação de longo prazo que este trabalho do programador se distingue, acrescenta:: “ O afeto entre um programador e um artista é uma coisa muito complexa e forte,  com alguns artistas eu construí isso”.

A sua ligação ao Alkantara começa em 2006, em 2008 assume a direcção do Festival que agora deixa a David Cabecinha e Clara Nobre Sousa. Ele quer voltar ao seu trabalho artístico como cenógrafo e desenhador de luz: “ Quando eu aceitei fazer o Alcântara no final 2008 sempre falei que ia fazer duas edições. Uma não chega e então eu falei nas duas edições. “

Ficou dez anos. Apanhou os anos da crise, a crise que se abateu sobre a actividade cultural e artística, que também lhe dificultaram a passagem de testemunho: “- Eu não quero fazer de vítima mas nós tivemos um corte de 70% nos apoios.” Um corte  que não era justificado com nenhuma avaliação. “ Ela era ótima, eu escrevi sobre isso,  tinha a ver com os critérios na altura, é que  tudo o que nós representamos, a multidisciplinaridade, a internacionalização, a criação contemporânea, não era valorizado nos critérios de avaliação. “

Algumas pessoas em quem Thomas apostava para o substituírem, como Ricardo Carmona que foi para Berlim, como curador da programação do Teatro Hebbel am Ufer (HAU), um dos teatros indepnendentes mais importantes da cidade.  também saíram do projecto. Voltamos sempre ao mesmo problema, o subfinanciamento. O Alkantara está em redes internacionais, faz parcerias nacionais e internacionais mas “ quando se compara o financiamento com outros festivais  na Europa com os quais temos ligações, a diferença de capacidade financeira é uma coisa descomunal.

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O Alkantara tem cerca de seis pessoas na sua estrutura regular e aquando do Festival duplica-a. Hoje Thomas Walgrave, pesem estes condicionalismos, vê a situação de modo diferente . “ A energia mudou, a situação mudou, o diálogo existe, eu sinto que hoje é completamente diferente dos anos da Troika e é impressionante como isso passou para a vida das pessoas. As águas acalmaram, a tempestade passou, a situação da casa é muito saudável enquanto projecto. Temos aqui um projeto de residências, estamos a fazer obras.”

Interessava-me continuar a falar sobre a sua visão de programador, a sua particular visão, enquanto estrangeiro há muito radicado entre nós, é claro que eu estava ali para falarmos sobre a programação (o primeiro texto deste dossier foi sobre a programação, para a desvendar), mas a certa altura percebi que havia um testemunho a recolher de Walgrave, a sua perspectiva, decorrente do acompanhamento que fazia da vida artística e cultural portuguesa. Confrontei-o com o tão discutido modelo de apoio às artes em Portugal, invocando as experiências de outros países europeus. Começa por dizer que lhe parece que o modelo nacional balança entre o francês, que tem uma uma visão muito hierárquica sobre o financiamento em que o dinheiro vai para as grandes instituições, e o belga muito mais ligado ao apoio a estruturas que são independentes tanto dos grandes teatros como das instituições. E aquilo que lhe surge mais difícil entre nós é “uma desconfiança do Estado face ao sector independente,  nunca é pessoal, eles gostam mesmo do que nós fazemos, mas sinto isso na relação com o Estado, com a Câmara, uma desconfiança, talvez por termos uma actividade menos controlável.” O atraso crónico nos financiamentos atribuídos, aspecto que no ano corrente está a atingir proporções incontroláveis para a actividade teatral em Portugal, é um aspecto que no caso de um Festival como o Alkantara, tem consequências, porque “ quando tudo fica em stand-by um espectáculo fica mais caro todos os dias”.

quando se compara o financiamento com outros festivais  na Europa com os quais temos ligações, a diferença de capacidade financeira é uma coisa descomunal

O corte brutal no financiamento teve consequências na programação: ao mesmo tempo que perdeu capacidade financeira o festival tornou-se muito mais convencional nos seus espaços, nas suas apostas: “- Não foi uma opção de programação foi uma contingência. Quando nós perdemos 70% do nosso financiamento a primeira coisa que tu tentas proteger são espetáculos que são os seus pontos altos, aquilo que vai a vida são os artistas emergentes nos espaços não convencionais, os debates, as exposições. Porque já não há dinheiro Isso é uma lição terrível, é uma lição para a qual nós estamos todos muito conscientes aqui.” Thomas refere também, nesse domínio das possibilidades, que o projecto Alkantara não se limita ao festival e à sua programação: “- As residências de criação e investigação são coisas que eu acho intrinsecamente tão importantes como a programação.”

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Logo que começámos a falar trouxe-lhe uma afirmação do programa, do seu texto de apresentação do Festival:  “O Alkantara Festival 2018 vai ser o meu quinto e último. Isso talvez explique porque é que este programa é mais pessoal”. Esse lado mais pessoal traduz-se no trazer artistas por quem a sua admiração, pelo modo como se empenham em questionar e investigar as linguagens que utilizam,  se tem traduzido na construção de uma afinidade. Dado esse percurso, perguntei-lhe como é que, em contraponto a esta primeira geração onde encontramos primeiro nomes como os de João Fiadeiro, Vera Mantero, Aldara Bizarro, Francisco Camacho, ele vê as novas gerações de criadores:

“- Em primeiro lugar há uma diferença entre a geração da Aldara, do João e da Vera e a geração de hoje. Uma das questões é perceber quando é que um grupo de criadores se torna num movimento ou não?  Há para mim uma chave para entender isso, é que individualmente pode haver artistas mais ou menos interessantes mas a questão de um movimento é que este precisa de um olhar crítico externo forte.”

Um olhar crítico forte. Já havemos de voltar a isso, por iniciativa do próprio Thomas. “- Por outro lado muitos deles voltaram das suas experiências no estrangeiro, e por outro lado, talvez seja uma geração, e eu estou a pensar em voz alta, talvez seja uma geração que tinha um contraponto muito mais claro. Tinha a dança clássica, uma recusa disso, eu sinto isso de uma forma muito forte em alguém como a Vera ou João.  Eu agora estou a simplificar porque eles são muito mais inteligentes do que isso mas eles trazem claramente uma posição anti-ballet. “

Já não encontra esta alta-definição posteriormente:

“- Para uma geração como a Sofia Dias, Vítor Roriz, Cláudia Dias, o João dos Santos Martins e outros esta questão já não interessa muito. Então o inimigo é menos claro. O que faz com que a linguagem que sai daí seja mais híbrida. Continuamos a ter criadores muito interessantes, é uma geração com um trabalho muito forte e intenso mas é menos fácil dizer isto é a nova dança portuguesa. Isso é um fenômeno cultural a todos os níveis,  o crescimento exponencial de géneros e de linguagens.”

E voltamos ao território da crítica. Uma função que cada vez menos tem espaço nos meios de comunicação, mesmo quando ela é digital e o espaço parece muito maior:

“- Eu acho uma pena a perda de espaços nos jornais, na comunicação social. E por outro lado há às vezes uma  espécie de confusão entre um dramaturgo e um crítico. Por vezes o crítico parece que quer assumir a função de dramaturgo. Não faz uma crítica para expressar uma posição, posição essa  que provoca um debate sobre a dança, sobre o teatro, um debate que nós precisamos. Nós precisamos da crítica mesmo como parte constituinte do debate sobre a sociedade. “

Thomas Walgrave sente que muito deste percurso do Alkantara foi feito também com a criação desse discurso crítico e tentou destacá-lo, no próprio documento de apresentação do festival, com um excerto de um texto de André Lepecki escrito aquando da primeira edição em 1993 do Danças da Cidade.

“- Eu também estou muito interessado em ver como é que alguns destes artistas vão fechar ciclos, em acompanhar o percurso” Fala-me novamente do diálogo, do afecto, a certa altura há-de dizer que que organizou a estadia do bailarino congolês Jeannot Kumbonyeki de modo a que ele pudesse conhecer o trabalho de Bruno Beltrão ( um trabalho verdadeiramente singular em que o breakdance, o hip-hop e outros estilos urbanos de danças  se aproximam das linguagens da dança contemporânea) e eu percebo que também é a este nível muito concreto que no Alkantara se congeminam encontros, redes, futuros. Kumbonyeki acabou por não poder vir, não conseguiu visto a tempo e isso prendeu-se por dificuldades criadas pela situação política do seu país.

Thomas Walgrave não esconde  a sua vontade de alargar públicos, também a vontade de sair do público habitual das artes performativas, o desejo de assumir uma componente política de alguns espectáculos como marca do próprio Alkantara. Itaca- A nossa Odisseia ( de que iremos falar destacadamente neste Dossier) é bem um exemplo disso. Ou Radio No Frequency que Zina Zarour assinou e que  “ é um espectáculo muito polêmico mesmo dentro da comunidade palestinianana”, acentua Walgrave.

Estamos a terminar a conversa, a entrevista. Tera, a gata, percebe isso, assume a sua presença, anda magnificiente por cima da mesa de trabalho, és alérgico, pergunta-me o Thomas quando me vê a suspender o olhar sobre o felino, e eu a lembrar-me para mim mesmo da célebre pichagem anarca sobre os gatos e os cães polícias, digo não, não sou, penso, não digo, penso,  enquanto desligo o gravador, estou só a saborear o tempo que um felino traz ao passar na vida da gente.

 



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