header2

Tratar do Tempo, Tratar de Nós

"Durações de um minuto", de Clara Andermatt e Marco Martins, com textos de Gonçalo M. Tavares, em cena no Teatro São Luiz. Uma experiência densa, complexa, sobre o tempo que o tempo dura.

No mesmo Teatro São Luiz que em Novembro discutiu as novas dramaturgias em Portugal, é apresentado este espectáculo da coreógrafa Clara Andermatt e do encenador Marco Martins, que acaba por ser um objecto que, pela sua riqueza cénica, contribui para um melhor entendimento sobre o que podem ser as tendências dramatúrgicas contemporâneas.

Partindo de uma grande margem criativa (Jorge Salavisa convidou-os e deu-lhes carta-branca para criarem um espectáculo em conjunto) os limites começaram a surgir pelas escolhas que iam fazendo: os textos de Gonçalo M. Tavares (uns já existentes os outros escritos para o espectáculo), os intérpretes (de várias idades e formações, entre os 24 e os 86 anos) e a decisão de valorizarem muito o trabalho de improvisação.

O tempo, que é o grande tema que liga todo o espectáculo, só ganhou uma maior evidência quando, a propósito do terramoto do Chile, surgiu a discussão pública sobre a possibilidade dos dias terem sido encurtados. Influenciados por esse debate, começaram a fazer experiências sobre a duração de um minuto.  Há alturas em que, através do cronometrar rigoroso de um minuto, parece que o tempo é interrompido pela própria consciência da passagem do tempo (o espectador mais afoito a ligações poderá conectar-se confortavelmente com os filósofos Henri Bergson e Gilles Deleuze).

Durações de um minuto, zonas de impacto

Uma cena praticamente despida – numa nudez que leva até a que não haja os habituais panejamentos (como as pernas e as bambolinas) que limitam lateral e superiormente a cena. O fundo é tapado por uma parede gigantesca, com colunas de som empilhadas umas em cima das outras. Esta parede é um objecto estranho. Se, por um lado, nos leva de imediato a uma presença da tecnologia, por outro, a forma como está construída esta parede invoca permanentemente a imagem de um enorme totem.

Trata-se de uma instalação que adquire uma função muito performativa, reforçada tanto pelo trabalho de iluminação como pelo da criação de ambientes sonoros e da música. Os personagens hão-de aliás reiterar a natureza dramática desta instalação, quer escalando-a, quer referindo-se a ela como uma espécie de entidade desconhecida e poderosa. Um último apontamento em relação ao espaço: na plateia, pendendo do tecto, sob a cabeça dos espectadores, está uma estranha instalação, que remete para um sismógrafo, e que à medida que se move, produz uma sonoridade mecânica muito peculiar.

Quando surgem os personagens

A primeira cena quase que se situa no plano de uma não teatralidade. Sam Louwyck, que assumirá um papel de anfitrião, recebe Luna Andermatt e Ana Diaz, que entram por uma pequena porta que se supõe ser a única ligação deste espaço com o exterior. Diz-lhes onde estão as águas, a máquina do café, do chá. Depois, lentamente, entram os outros actores e começamos a perceber que cada um deles tem um comportamento próprio. Não são personagens no sentido literal do termo. São personagens em progresso, aqui e acolá esboços, comportamentos, atitudes sobrepostas às suas identidades como actores.

Vão-se construindo e, ao construírem-se, levantam a cena. Romeu Costa age no plano da retórica, do discurso. Ivo Canelas representa a ideia de movimento, de velocidade. Anda de patins em linha marcando a ideia de uma certa circularidade do tempo. O personagem de Nuno Lopes deambula entre o clown e o provocador. Sam Louwyck é o chefe de grupo, o anfitrião, alguém profundamente ligado à memória, à história. Há-de ser ele o elo principal com as personagens criadas por Ana Diaz e Luna Andermatt. São Castro é uma bailarina que, a certa altura, irá projectar-se como uma imagem da própria Luna Andermatt ou, quase no final, na de um corpo que sucumbe à tortura. Tanto Sofia Dias como Vítor Roriz, destacam-se pela forma como interagem e se ligam com os outros personagens. Carla Maciel constrói um percurso que, quase no final, a leva à interpelação, é à revolta, diante da tortura e do excesso de violência a que um corpo pode estar sujeito. Como quando Nuno Lopes se estende no chão e sobre o seu corpo é colocado o baú ( dentro dele o personagem de Vítor Roriz) para cima do qual sobem duas personagens, numa pressão que acabará por lhe ser fatal. A cena faz lembrar o episódio em que Atlas, o titã da mitologia grega, foi castigado a carregar o mundo às costas.

A presença de Luna Andermatt

Num espectáculo que parece querer esquivar-se a centralidades narrativas, o eixo da história de Luna Andermatt acaba por, naturalmente, adquirir um enorme peso dramático. A revisitação do “Pássaro de Fogo” que ela dançou há muitos anos, o confronto inter-geracional  entre Luna e os personagens de Nuno Lopes e de Ivo Canelas, criam uma intensidade dramatúrgica que une diferentes momentos da peça, densificando-a.

As zonas de impacto: espaço, personagens, silêncio, ritmo, luz, som. E palavras, os textos de Gonçalo M. Tavares. Estes valorizam a cena no modo como se deixam misturar com todas as outras textualidades de uma dramaturgia que,  como se referiu, se inscreve nas tendências mais contemporâneas da criação cénica. E quando saímos são também as suas ressonâncias que permanecem. Por exemplo aquele jogo vigoroso de desconstrução ideológica sobre a educação, entre o sedar e o sentar.

À conversa com Clara Andermatt e Marco Martins

No final, sentados na boca de cena, tivemos uma pequena conversa com os dois responsáveis pela criação do espectáculo. O processo de trabalho durou dois meses e contou logo com os intérpretes. Começámos por questionar as consequências, para o processo, de serem dois criadores:

Clara Andermatt: Esta dinâmica de criação a dois não é nem evidente nem usual, nem fácil. Não só não nos conhecíamos bem como vimos de áreas completamente diferentes. Teve um tempo diferente do que se fosse apenas uma pessoa a criar. E isso também foi salpicando para os outros, era uma espécie de ricochete.

Marco Martins: É como os actores dizem, um espectáculo em que há um pai e uma mãe.
Na dança os intérpretes estão mais habituados a trabalharem a partir da improvisação, no teatro nem tanto. Como é que se juntaram aqui?

Marco Martins: A improvisação é sempre algo que eu trabalho muito em cinema. Aqui foi um bocadinho a mesma coisa. Por vezes não tínhamos o texto, já tínhamos a situação. Por exemplo, esta é a cena em que vamos experimentar a rapidez. Esta é a cena em que vamos experimentar a lentidão. Fomos estabelecendo que havia personagens mais eloquentes, outros mais intelectuais, outros mais relutantes em relação à experiencia, em relação à idade.

Clara Andermatt: Houve logo algumas características que lançámos ao principio e lançámos para todos e para cada um deles improvisarem. Para isso contámos também com essa capacidade dos intérpretes. Fizemos também várias improvisações sobre aquilo que cada personagem era na relação com os outros.

Claro que tínhamos de confrontar a Clara Andermatt com o facto de ter trabalhado com a sua mãe.  Foi Luna que, desde os três anos, a trouxe para o mundo da dança. Começou por reconhecer que o facto de dividir a criação do espectáculo com Marco Martins a tinha facilitado a criar um distanciamento.

Clara Andermatt: Nunca tinha trabalhado com a minha mãe. Nunca a tinha visto dançar. Sei que ela sempre foi bailarina, sei imensas histórias sobre ela, tenho esta profissão também um pouco por causa dela, há aqui uma vivência brutal com ela de toda esta vida na dança e ao mesmo tempo nunca a tinha visto do lado de lá. É um conhecimento em relação a ela, em relação a mim própria através dela. É muito forte.

A terminar falámos sobre a forma como esta experiência os tocou. Marco Martins fala das leituras e das pesquisas sobre o tempo, sobre a duração. Repete uma ideia que o marcou: “-Quando somos novos passamos dias longos em ruas compridas e quando somos mais velhos passamos dias curtos em ruas curtas “. Clara Andermatt, que foi também buscar os seus cruzamentos com Cabo Verde e o trabalho com pessoas com deficiência para se projectar neste trabalho sobre o tempo, foi mais categórica e entusiasta:

Clara Andermatt: Nós só vemos mesmo uma parte do mundo! Estamos ali numa faixa etária do 20 aos 50 e ali todos certinhos e fazemos as coisas que queremos e nos apetecem e há coisas que nós não temos a mínima noção! Nós não temos mesmo a noção do espectáculo do mundo inteiro! A maneira como tratamos os outros, o paternalismo em relação às crianças, aos de mais idade, aos próprios deficientes. Estamos aqui todos e é muito redutor, andarmos só neste sitio e depois vemos uma pessoa com oitenta anos e não percebemos que ela é igual por dentro e que tem as mesmas necessidades e tratamos isto com uma distância que só nos põe mais pequeninos…

Direcção: Clara Andermatt e Marco Martins A partir de textos de Gonçalo M. Tavares
Música Original: João Lucas
Cenografia: Artur Pinheiro Desenho de Luz: Nuno Meira Figurinos: Dino Alves
Intérpretes: Luna Andermatt, Ana Diaz, Carla Maciel, Ivo Canelas, Nuno Lopes, Romeu Costa, Sam Louwyck, São Castro, Sofia Dias, Vítor Roriz

Durações de um minuto estará em cena na Sala Principal de 5 a 27 de Novembro, de quinta a sábado às 21H00 e domingo, dia 28 de Novembro, às 17H30.



There are no comments

Add yours

Pin It on Pinterest

Share This