“Em teu ventre” de José Luís Peixoto

“Em teu ventre” de José Luís Peixoto

Elogio à maternidade

Sem que exista um fim, ou palavra semelhante, nas últimas páginas de “Em teu ventre” (Quetzal, 2015), José Luís Peixoto partilha uma nota: «Este é um texto de ficção». Mas não será a própria vida um facto ficcionado? Onde começa e acaba o ato a que costumamos definir como realidade? Será esse um termo apropriável, uma forma de encarar o mundo, os seus acontecimentos? E será essa verosímil partilha uma verdade, sentimento ou sensação, pessoal e tornar a mesma num dogma?

É esse um dos maiores desafios da humanidade: distinguir o real do imaginado, sonhado ou sentido. E é esse um dos dilemas que a religião, as suas doutrinas, têm enfrentado ao longo de muitos séculos e que têm na origem da sua devoção factos que desafiam a lógica, o “normal” quotidiano.

Os milagres, frutos de análises várias, encontram-se dentro dessa categoria, entre a dúvida e a devoção, entre a crença e a desconfiança, entre o inesperado e a falácia. Dentro desse quadro, Portugal, viveu nos primórdios do século XX, um episódio que colocou o período entre maio e outubro de 1917 nos anais da religião cristã.

As (supostas) aparições da Senhora de Fátima aos três pastorinhos numa pequena azinheira na Cova de Santa Iria transformaram a vida de Lúcia, Francisco e Jacinta, primos de sangue, nos principais “porta-vozes” da igreja católica em Portugal.

Tendo por base esses acontecimentos, José Luís Peixoto escreve “Em teu ventre”, nas suas palavras uma «novela» que cruza o rigor da sua dimensão histórica e que coloca em cima da mesa uma profunda reflexão sobre um país que aceitou o referido fenómeno e o transformou, via Estado Novo, numa das suas bandeiras.

Se bem que estejamos perante um trabalho de ficção, tal como o referido no início deste texto, «os dados que o compõem têm como base a informação contida nos livros Memórias I a VI, da autoria de Irmã Lúcia de Jesus». E foi com essa informação, assim como de algumas outras publicações da época, que nasceu um livro tranquilo, que caminha entre «instantes de assombro e milagre» e que versa, essencialmente, sobre a maternidade, sobre os trabalhos de quem pare um filho, de quem o trata, acompanha, sente e sofre.

Com a habitual e serena mestria, Peixoto transporta-nos numa viagem ao coração da própria bondade, da inocência, do querer acreditar e de algum desespero. A escrita de “Em teu ventre” é muito mais que uma matemática de palavras, uma soma de constatações, ideias.

As frases, embebidas num misto de simplicidade e assertivo apelo ao coração, são como que um resultado, um sinónimo de uma transcendência comunicacional, seja isso uma forma de partilha coletiva, privada, sacra ou profana.

As palavras, escritas ou ditas, nascidas com aquela particular forma de respirar, num sopro de quebrando, elevam-nos ao expoente do sentimento, das emoções verdadeiras, ora amargas ora doces, mas sempre reais, seja a realidade aqui entendida como uma mãe que sofre pelas “mentiras” da filha traquina ou pela perseguição que a comunidade faz ao seu rebento em busca da salvação.

A transparência sempre foi uma das maiores qualidades da escrita de José Luís Peixoto. Nos seus livros, e este não é exceção, disseca-se a vida, em tons escuros, doridos, dilacerantes, seja o tema o desespero, a solidão, o amor, a religião ou uma mãe que atravessa «a vida e a morte como a verdade atravessa o tempo, como os nomes atravessam aquilo que nomeiam».

Livro que se lê num trago, num suspiro, “Em teu ventre” é um olhar sobre o que está além da própria racionalidade, da memória, da paixão, do aceitar de um papel, do destino de se entregar aos trabalhos de parto e dar a vida por quem vem de dentro, do ventre.



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