Ensaio sobre a Cegueira @ Trindade

Se puderes olhar, sente.

Levar à cena uma das “utopias negras” mais perturbadora de Saramago é, indubitavelmente, ambicioso. Ser bem sucedido é, indubitavelmente, tarefa apenas ao alcance de alguns.

Mas, como se afere esse sucesso?

A visão de Saramago dos homens, profundamente humana (em tudo o que humano significa e simboliza), não é consensual. Há quem lhe tenha alergia, asco, desprezo. Há quem lhe tenha admiração, fascínio, adoração. Raros são os que lhe ficam indiferentes.

Transpor toda essa dimensão humana, físico-quimica-emocional-hormonal-(i)racional para um palco necessita de três ferramentas essenciais, a saber: uma boa direcção de actores, bons actores e, principalmente, a compreensão de todos os intervenientes do conteúdo da obra que vão encenar, coreografar, iluminar, vestir e representar.

O pano sobe num cenário minimalista, com recursos cénicos baseados sobretudo na convenção. Poupemos o espectador a mobiliário, objectos, portas… coisas.
Entram os actores em fila, como se em fila andássemos, no carreiro previamente definido. O conformismo, o habitual, o andar em grupo isolado. O carreiro vai deixando os actores em cena e a peça começa como o livro: “Estou cego”, diz um homem numa voz grotesca.

Seguem-se as cenas que levaram necessariamente à clausura. Mas antes da clausura, os actores apresentam as suas personagens numa estética de representação que nos lembra marionetas, de riso forçado e atitudes “comandadas” num artificilialismo que nos pode conduzir a alguma alergia e temor pelo resto da peça.

A cegueira generaliza-se e o governo decide enclausurar os contaminados, abrindo-se o palco a uma cenografia bem sugestiva, sem demais artefactos que permitem a convenção e a compreensão do dilema em que estão estas pessoas.
Respira-se um ar apocalíptico, pesado, um ambiente de cárcere e de degradação humana. O lado mais humano do ser vem ao de cima: na fome, no apetite sexual, na impossibilidade de dormir, na falta de higiene, nas necessidades físicas, imperativas e incontornáveis. Tudo isto agravado por uma cegueira, mas uma cegueira branca, como se tivesse mergulhado num mar de leite.

Há uma mulher que não cega. Uma mulher que vê toda a sujidade, a morte, o sexo, a fome, a degradação a que chegaram, como se fosse uma pena mais dura a cumprir.

O conflito exacerba-se quando um grupo de contaminados detém armas (não estando ainda cegos) e ameaçam usá-las. Seguem-se as cenas mais perturbadoras e degradantes da obra, mas em que o encenador optou por coreografar. A violência sexual, a agressão dos corpos está lá, mas sugerida através de movimentos de dança, explícitos, mas ainda assim graciosos.
A música acompanha toda a peça até ao intervalo, como um peso, como uma ilustração, como uma presença surda e, ao mesmo tempo, sonora e ruidosa, imperceptível e distinta.

Na segunda parte, a libertação. O sair cá para fora e haver silêncio, e esse silêncio ser mais ensurdecedor que qualquer música. As personagens perdem os seus modos grotescos, como se tivessem recuperado uma dignidade perdida.

E vem a água, para lavar a sujidade, para limpar a alma, para apagar a memória. Os corpos nus das actrizes em palco têm uma simplicidade própria de quem se despe sem sensualidade, de quem dá o corpo um momento de pureza, de naturalidade, quiçá de beleza.

Entramos na linguagem dos afectos e da esperança, diálogos esses que só mesmo Saramago sabe fazer, e que aos quais os actores emprestam uma voz e uma naturalidade convincente.

Toda a peça é um quadro de sensações, uma manifestação de imagens, sons, odores, danças, expressões, um elogio dos sentidos para além da visão. De realçar o admirável trabalho dos actores bem dirigidos, numa intensidade que se sente, que se ouve, que quase se toca, embora por vezes corra o risco de extrapolar para um registo mais exagerado. Ainda assim, sente-se a entrega dos actores a uma alegoria possivelmente real, num trabalho que se vê exigente e complexo.

Uma peça pensada, construída, encenada e representada sem mácula, sem desvios, sugestiva e subversiva, prisioneira e esperançosa, misantropa e crente na capacidade de nos reconstruirmos, de construirmos um mundo melhor.

Quem passar pelo Trindade, veja. E se puder ver, que sinta.



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