“Eu não sou bonita, eu sou o porco”
"Eu não sou bonita", disse Angélica Liddell, "Eu sou o porco", escreveu Paulo Castro. Foram estes materiais que deram a John Romão a possibilidade de dirigir Solange Freitas num trabalho a solo. Um trabalho sobre o desejo, sobre o corpo, sobre o poder. Tendo como pano de fundo o abuso sexual de menores. No Negócio da ZDB, até 29 de Dezembro
Uma série de cruzes suspensas no tecto, cruzes que são feitas com lâmpadas, criam um céu católico e psicadélico que envolve toda a representação quase desde o primeiro momento até ao final do espectáculo. É uma imagem em suspenso. John Romão diz que lhe interessava “trabalhar o esvaziamento das imagens, do poder que tem e do que associamos a cada ícone.” Ele tem consciência de que o espectador pode fazer ligações entre a religião e a pedofilia, mas pretende ir um pouco para além disso e trabalhar a questão da fraqueza do homem, até do próprio violador, enquanto vítima do seu desejo.
“O que me interessa é pensar o papel do corpo. Pensar a imagem do corpo, do corpo feminino. E aí metemos ao barulho essa ideia do surrealismo, e também a ideia de esventramento. Essa ideia de querer entrar dentro desse corpo. O desejo levado ao extremo: querer conhecer não é só conhecer, é também entrar, entrar não é só entrar, é também violar, violar não é só violar, é também esventrar.”
John Romão, actor e encenador português, embora tenha ainda uma curta carreira, tem já um trabalho relevante tanto em Portugal (é com Mickael de Oliveira o fundador do Colectivo 84) como fora do País (é colaborador habitual do encenador Rodrigo Garcia e trabalhou também com Romeo Castellucci na Bienal de Veneza 2011). Depois de ter feito “Agamémnon – Vim do Supermercado e dei porrada ao meu filho”, ficou com vontade de fazer um solo com uma mulher e pensou em fazê-lo com Solange Freitas.
Lembrou-se então do texto “Eu não sou bonita” da Angélica Liddell, que tinha conhecido no Festival de Bordéus e de cuja escrita ficou muito próximo. Como é um texto curto e do qual quis tirar ainda o lado mais confessional que o texto tinha, convidou Paulo Castro, com quem já tinha trabalhado, a escrever sobre o mesmo tema, o abuso de menores. Embora tivesse partido da ideia de um solo para uma actriz, Paulo Castro acabou por desafiar o encenador, que também é actor, a defender um texto. E foi assim que ele acabou por ficar envolvido também na representação. O que na sua opinião ajuda a “evitar que o espectáculo fique com um tom muito meloso e auto-complacente sobre a mulher e sobre a violência no corpo da mulher e nas crianças femininas”.
“Estou a escrever um texto horrível, tenho nojo do que estou a dizer”
O texto de Angélica Liddell é um registo denso, autobiográfico, com uma dimensão poética muito forte. Paulo Castro não sabia que o seu texto se ia cruzar com o da criadora espanhola. “Eu não dei nenhumas limitações ao Paulo. Pedi-lhe apenas um texto sobre o abuso e que fosse um solo. Ele às vezes mandava-me um email a dizer – estou a escrever um texto horrível, eu que sou pai de filhos tenho nojo do que estou a dizer.”
“Eu sou o Porco” é uma fábula onde o mais cortante realismo e uma violência verbal estonteante se articulam com um imaginário de pendor surrealista. Há uma narradora, num percurso narrativo que começa no Ruanda e chega até Lisboa, que presenciou vários crimes de abuso sexual, e que ora se vai transformando em serpente, ou em gato, ou em tubarão branco australiano, para realizar uma vingança, fortemente moralista, sobre o violador, infligindo-lhe um mal ainda mais horrendo do que aquele que ele provocara.
Dois textos, um mesmo dispositivo
Aparentemente, o espectáculo está dividido em duas partes, a que correspondem dois blocos de texto diferentes. Um escrito por Angélica Liddell, criadora multifacetada, dramaturga, poetisa, performer e intérprete dos seus próprios textos (apresentou em Lisboa, na Guilherme Cossoul, “Lesiones Incompatibles com la Vida” sendo presença habitual no Festival Citemor e tendo estado também no último Encontro de Teatro Ibérico, em Évora), e outro escrito por Paulo Castro, actor, encenador, realizador e dramaturgo português que vive em Adelaide, na Austrália, tendo um percurso de grande internacionalização do seu trabalho, em palcos importantes de Madrid, Austrália, Alemanha, Islândia, França e Bélgica.
E dizemos aparentemente, porque John Romão criou um dispositivo cénico que, através da interacção de dois tipos de representação, um mais identificado com a instalação e a performance, o outro mais próximo da criação de personagem, faz surgir uma continuidade discursiva que se sobrepõe às diferenças materiais dos dois textos.
“Criei assim um corpo que está sempre em acção, numa espécie de segundo plano, criando pequenas instalações, cortando, colando, como se fizesse trabalhos manuais, como se fosse uma criança. Todas as acções são feitas no chão, sem plataformas, uma figura quase fantasmagórica, que está sempre presente, e que tem uma contribuição para a acção da personagem feminina.” – diz-nos, acrescentando- “Aqui tentei também construir um espectáculo muito limpo em relação às acções. Não queria que elas fossem mais violentas que o texto. Porque me interessava essa ideia da fábula, do conto infantil, que o Paulo explora muito bem, disparando para um lado surrealista.”
Para John Romão, e o que se enquadra no trabalho de criação dramatúrgica que vem desenvolvendo com Mickael Oliveira no Colectivo´84, “as acções estão no mesmo nível do texto..”:
“Trato o texto como um outro material qualquer, colocando-os ao mesmo nível. Gosto de trabalhar as coisas fora de uma hierarquia vertical, mais como uma coisa horizontal, tudo ao mesmo nível…”
Assume a grande influência do trabalho com Rodrigo Garcia, principalmente porque o criador hispano-argentino o ouvia, o incentivava e valorizava, incluía até as suas ideias nos seus espectáculos, fazendo-o romper com a timidez com inicialmente encarava o seu trabalho:“Em 2005 vivia em Almada e não sabia quando teria coragem para apresentar o meu trabalho em Lisboa. Para mim vir a Lisboa não era apenas meia hora de viagem. Era uma distância enorme.!“
Já no final da nossa conversa John Romão confessou que quer sair do País, não de uma forma permanente, mas aproveitando este impasse na actividade cultural em Portugal:
“Uma coisa já decidi, até porque não quero viver ressentido com as coisas que não posso fazer, conto emigrar para Berlim no final do ano, já vou começar no próximo sábado com aulas de alemão. Berlim seduz-me, há muitos espaços para trabalhar. Ao contrário do que acontece cá, em que há muitos espaços da CML que estão fechados e que poderiam ser abertos. Bastava lá pôr água e luz e já podíamos ensaiar. Porque os ensaios é que são o principal. O trabalho é isso, é podermos pesquisar, investigar. E isso na Alemanha é possível. Aqui por vezes num só espectáculo mudamos cinco vezes de espaço de ensaios.”
“EU NÃO SOU BONITA. EU SOU O PORCO” | Ficha Técnica
Concepção, direcção e espaço cénico: John Romão | Textos: Angélica Liddell e Paulo Castro
Interpretação e co-criação: Solange Freitas e John Romão| Desenho de luz: Daniel Worm d’Assumpção | Música: Daniel Romero (.tape.)|Vídeo: Luis De Los Santos |Direcção técnica: Ricardo Campos |Assistência e operação de som: Tiago Cadete |Operação de luz: Ágata Alencoão |Fotografias: Susana Paiva
M/18
Reservas e informações: reservas@zedosbois.org, 213430205
http://colectivo84.blogspot.com/ www.zedosbois.org
Bilhetes: 7.5€ (com desconto para grupos de estudantes, mais de 5, a 5€)
Negócio/ZDB
Rua de O Século Nr.9, porta 5, Bairro Alto – Lisboa
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