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Festa da boa, é no Gamboa

Mais de 80 mil pessoas estiveram presentes no maior Festival de Cabo Verde. Querem saber porquê?

Há 18 anos que é assim. A cidade da Praia, capital de Cabo Verde, pára para o festival da Gamboa. Numa terra em que é Verão todo o ano e tudo e nada é motivo para festa, crioulos e crioulas, pessoal local e mais internacional, turistas e outros curiosos não perdem a oportunidade de dançar e assobiar ao som da música de Cabo Verde e do mundo. E este ano não fugiu à tradição.

O Festival da praia Gamboa é já uma tradição da Praia, qual Sudoeste, Sonar ou Glastonbury. Que o digam as mais de 80 mil pessoas que lá apareceram nos dias 21 e 22 do passado mês de Maio. Este ano, a receita foi para a música Cabo-verdiana e para a segurança, num bolo cuja cereja sabia a Buraka Som Sistema. Assim, se desafio era grande as expectativas eram ainda maiores, numa tentativa de equilibrar a emoção com a boa onda e tranquilidade por vezes quebrada neste tipo de acontecimentos nesta terra, uma tarefa sem sempre fácil nem conseguida pelas entidades locais. Talvez alguns não saibam mas a cidade da Praia é conhecida pela sua violência. Lá, e desde sempre, as coisas resolvem-se à faca: quem se porta mal tem que ser castigado e ficar com a respectiva cicatriz. Contudo, trata-se ainda de uma temática melindrosa numa terra que já foi pacata, onde as boas gentes e a morabeza sempre reinaram num misto de relax com o passa sábi.

Festival à moda di terra

Em Cabo Verde, todo o evento é tempo de família, para todos, por isso miúdos e graúdos entram na festa e ajudam a deitar foguetes. E, claro, no Gamboa não foi excepção. Tudo começou com Panda e o Ruca que vieram directamente de Portugal para animar os presentes e, nem os mais de 30 graus secos que se faziam sentir naquela tarde, impediram a tarefa. Afinal, se há coisas internacionais com sucesso garantido, esta dos pikinotes (pequenos, em crioulo) é uma delas. Quem não gosta de desenhos animados?

A festa continua pela noite dentro, embora com atenção redobrada dadas as clássicas histórias com finais menos felizes. Facadas e tiros, “a guerra” como os gangs locais lhe chamam, costumam pautar alguns ajustes de contas que surgem do nada mas arrastam tudo à volta. E, com tantos casos registados nos anos anteriores e dada a epidemia nacional de violência, a Câmara Municipal da Praia, a entidade organizadora deste evento, não podia dar-se ao luxo de descurar a segurança. Para garanti-la, todos e todas eram revistados à porta, melhor, à grade que definia e isolava o perímetro deste festival de praia citadina, mesmo junto da avenida marginal, uma das artérias mais movimentadas da cidade da Praia.

Contudo, e apesar de tanto cuidado nada impede o lixo, a s garrafas partidas, as latas no ar e uma ou outra maca a passar na urgência no momento. Nada de excepcional para um festival que ganha nova dimensão se imaginarmos 80 mil pessoas, grelhas de churrasco, bilhas Camping Gás máquinas de pipocas, carrinhas de cachorros, cachorros e outros animais e objectos, mil cheiros e gentes, todos colados no mesmo espaço, todos a saltar euforicamente, quase em êxtase pela libertação que a festa dá, numa sociedade onde há ainda poucos momentos desta libertação. Em suma, é África e a sua a característica (des)organização logística – por exemplo, o bar da imprensa é um contentor, esses mesmo, como há em Santa Apolónia .

Senão vejamos as palavras de um agente da autoridade numa entrevista para a TCV (Televisão de Cabo Verde, canal estatal) “Ontem, não houve nenhum caso de agressão. Somente algumas pessoas foram conduzidas ao hospital com leves escoriações provocadas por quedas. Hoje registamos um caso de um indivíduo agredido à facada. Foram ainda detidos vários indivíduos para identificação e apreendemos várias armas brancas durante a operação”. Palavras para quê. Felizmente, o balanço foi mais positivo que as palavras e o segundo dia mais tranquilo, embora a segurança não saia da cabeça de quem lá vai. Uma espécie de “olho no palco e outro em tudo o resto”. Mas saltemos para o melhor do dia-a-dia.

Música sabi (que é como quem diz, gostosa)

Sexta- feira, bem à maneira Cabo-verdiana, foi o dia mais esperado da semana e trouxe Vilú e a sua banda, seguido de Susana Lubrano, Gylito e Jorge Neto, tudo nomes sonantes e queridos do panorama musical Cabo-verdiano. Muita dança e calor, palmas e braços no ar tiveram o seu auge com o clássico fogo-de-artifício da meia-noite, ouvido em toda a cidade. Contudo, a sensação geral foi a de faltar qualquer coisa. É para isso que serve sábado.

“Tudo começou, há um tempo atrás, na ilha do sol” , felizmente não com o Netinho mas com o projecto Verão. O Gamboa deu uma mão à revelação de novos talentos em Cabo Verde, os quais puderam apresentar as suas músicas neste grande palco. Nomes como Nhelas e Djony, Paulinha, Zé Espanhol, Ló, Erikson, Djandja, e Tulex & Sandra saltaram do anonimato ou, se preferirem, do êxito caseiro para os ouvidos da plateia do Gamboa – ninguém nos diz que não serão os Titos, Cesárias e Mairas da década. Sons mais animados ou mais românticos, inspirações no zuk, na kizomba e no funaná, sonoridades mais marcantes ou de mais lenta compreensão, tudo com um balanço positivo e surpreendente por parte de quem por lá passou e ouviu atentamente. Iniciativas desta têm especial papel num país como Cabo Verde, onde toda a gente tem uma costela que canta, uma perna que dança, uma mão leve para os instrumentos mas onde os apoios continuam a ser escassos e de difícil acesso.

Olhó funaná fresquinhooo

Não há festival crioulo sem Funaná, o som do ferro e da gaita. O grupo mais importante do género, os Ferro Gaita, não estavam – estavam antes por terras europeias em digressão- o que não impediu uma homenagem à altura desta banda fetiche local. Este nome, Ferro Gaita, a priori estranho, tem a sua origem na combinação dos dois instrumentos. Esses mesmo, o ferro, isto é, pedaço de metal tocado com uma faca, e a gaita, tal como em Portugal, um género de acordeão. Ambos são utilizados na música tradicional cabo-verdiana e são os instrumentos base do género musical mais tocado por este grupo, o funaná. Então este é que é o famoso funaná? É. Trata-se de um dos géneros musicais mais típicos de Cabo Verde – ao lado das mornas e das coladeiras- e que não deixa ninguém indiferente ao seu “um dois, um dois”. O funaná teve as suas origens na chegada do acordeão a este país, onde um habilidoso camponês do interior de Santiago, a maior ilha e onde se situa a cidade da Praia, dele se apoderou para expressar as suas vivências marcadas pela pobreza, revolta e contestação. Esta revolta intrínseca ao género, levou à sua proibição durante a época colonial, nomeadamente em locais públicos. Felizmente a independência chegou a Cabo Verde há 35 anos e, com ela, a consequente libertação artística e musical. Nunca mais ninguém parou o funaná nem Bitori Nha Bibinha, Silvino, Iduino e Tio, Meno Pecha, Zé Mário de Bulimundo, Bino Branco, Eduíno e Xibioti, os artistas que lhe prestaram homenagem neste Gamboa, acompanhados de uma banda de suporte com elementos dos, lá está, Ferro Gaita.

Então e como se salta do tal camponês para os Ferro Gaita? Resumindo sem concluir, foi em 1996 que Iduino, seu mentor, e mais dois jovens músicos, descobriram na gaita, no ferro, na bateria e na viola baixo, novos caminhos para o funaná. Tal como outras bandas, começaram com actuações em bares, talvez porque aqui não é fácil encontrar uma garagem, talvez porque Cabo Verde é um país de música, onde todos se interessam pela cultura local. O certo é que desde cedo brilharam, em Maio 1997, já estavam no Gamboa.

Como já dissemos, este ano foi a excepção mas a homenagem ao funaná fez as honras do palco e a poeira só parou quando a última nota do ferro se calou. Para logo voltar. Porque este é um público que nunca fica satisfeito e que aguenta sempre mais, uma audiência que dança, pula, salta enquanto houver música e assim continua pela noite adentro. Por isso, continuou em delírio com Heavy H, um artista local com uma enorme variedade de habilidades. De cantor a dançarino, proprietário de loja de alimentação saudável e sex shop e ainda organizador de festas e eventos, Heavy H mostrou que “Nhos é familia, cabo-verdiano”. Em outras palavras, que somos todos família em Cabo Verde, da peixeira ao taxista, do badiu ao sampadjudo ( etnias locais), do manjaco (nome de um tribo guiniense que se tornou no nome de todos os emigrantes do Continente Africano) ao branco.

O sistema de som que não falha

E, tcham, tcham, tcham, tcham, o melhor mel para o fim. Weegee weeegee, os Burakaaa Som Sistemaaaa (mesmo com as vogais replicadas, quer pelo atraso quer pela ansiedade que se colocava nesta actuação) lá entraram no palco pouco depois da uma da manhã. Para nós, portugueses, os Buraka dispensam apresentação mas, para os cabo-verdianos não tanto e como seriam recebidos era uma incógnita. Embora sem grandes espantos se pensarmos na fórmula deste sistema, a mistura de sons e ritmos africanos e ocidentais dos Buraka resultou e o público vibrou e aplaudiu a viagem por estas músicas do mundo. “Viemos cá curtir “, disse Conductor à Rua de Baixo. E quem lá esteve também.



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