Festival Músicas do Mundo

O mundo inteiro em Sines.

O Festival Músicas do Mundo já não é o mesmo de há oito anos atrás. Agora, o festival não se limita aos três dias de festa e prolonga-se durante uma semana; também já não se fica por Sines e estende-se até à bonita praia de Porto Covo; e, mais do que tudo, já não é uma modesta mostra musical, mas antes um gigante festival, o que prova as lotações esgotadas nas noites no Castelo. Felizmente, a qualidade também aumentou exponencialmente de ano para ano.

O FMM é então o mais importante festival de world music do nosso país, uma bandeira cultural da margem sul e, cada vez mais, uma válida alternativa aos habituais festivais de Verão, que parecem começar a cair numa programação rotineira.

Durante os três dias mais importantes do certame, Sines transforma-se no centro do Mundo, acolhendo as mais diversas sonoridades provenientes dos quatro cantos do globo, mostrando que o ecletismo é uma das palavras de ordem do festival. O FMM é o festival da paz e da boa onda, onde milhares de pessoas das mais distintas tribos urbanas convivem em comunhão, num ambiente que dificilmente se repete nos outros certames nacionais. Durante três dias, o Mundo inteiro concentra-se no Castelo e na praia de Sines.

DIA 27

Já passava das 19, a hora marcada para o início dos concertos no palco da Avenida da Praia, mas de Vusi Mahlasela, uma das vozes da liberdade da África do Sul durante o regime do apartheid, nem sinal. Fazia-se um compasso de espera para que a plateia se compusesse um pouco mais, uma vez que o sol continuava bem quente lá do alto, desafiando as pessoas a permanecerem na praia mais um pouco.

Foi então com vinte minutos de atraso que Vusi Mahlasela, um dos principais cantores de intervenção sul-africanos, subiu ao palco, apenas acompanhado da sua viola acústica. E podemos adiantar desde já que valeu a pena todos os minutos de espera.

Para quem não o conhecesse, o cenário poderia ser assustador: com um porte de impor respeito, Vusi Mahlasela envergava uma camisa semi-aberta, que deixava a descoberto três números: 666 (que afinal era 46664, o número de preso de Nelson Mandela). Contudo, de maléfico Mahlasela não tinha nada, antes pelo contrário. Tal como Cristo, também ele veio propagar a palavra do amor e da liberdade, como o bom pacifista que é, conseguindo inclusive deixar o público a entoar em uníssono o refrão de «Red Song», this is the summer of love / this is the summer of life.

Numa altura em que o folk voltou a estar na ordem do dia (até já se criou uma nova tendência, o neo-folk), em vez de se embandeirar em arco de todos os que gravitam à volta de Devendra Banhart, talvez se devesse dar mais atenção a músicos como Vusi Mahlasela, que apesar de se apresentar sozinho conseguiu encher completamente o palco, com uma performance iconoclasta – dançou como Elvis, tocou como Hendrix e foi um verdadeiro one-man-show.

Com uma voz poderosa e versátil, que adquiria diferentes texturas consoante a língua em que cantava, Vusi Mahlasela foi uma excelente opção para abrir os três últimos e mais importantes dias do FMM, naquele que foi, quiçá, o melhor concerto do festival, especialmente pela surpresa que foi.

Da Avenida da Praia passou-se para o Castelo de Sines. A abertura solene do festival exigia um discurso mais apurado e este esteve a cargo do Presidente da Câmara, que viria a apelar à paz no conflito do Médio Oriente, algo que acabou por ser um pouco lugar-comum durante todo o festival.

Já começa a ser tradição o FMM iniciar-se com uma banda portuguesa. Há dois anos foi a Ronda dos Quatro Caminhos e o ano passado foi a Brigada Vítor Jara (acompanhados por Cristina Branco). Nesta edição, a honra coube aos Gaiteiros de Lisboa, presentemente na estrada a promover a edição do seu novo disco, “Sátiro”.

Os Gaiteiros de Lisboa são uma das bandas experimentais mais influentes de Portugal, assentes numa tradição de raiz tradicional, principalmente no uso da temática litúrgica, que, inesperadamente, casa na perfeição com o uso de diferentes sonoridades e distintos instrumentos. Com uma secção rítmica que não deixa ninguém indiferente, os Gaiteiros de Lisboa presentearam Sines com um concerto inimigo da letargia, com uma certa urgência punk, que teve particular aderência junto dos jovens presentes nas primeiras filas da plateia.

O momento alto do concerto aconteceu, no entanto, com a presença em palco de Paulo Charneca, ex-membro da banda, que num momento de virtuosismo na percussão arrancou a maior ovação do concerto.

A Rabih Abou-Khalil coube o momento mais ingrato da noite. Acompanhado pelo pianista/saxofonista alemão Joachim Kühn e o baterista Jarrod Cagwin, o rei do alaúde não teve tarefa fácil para conseguir captar a atenção do público.

Assente no universo do jazz-fusão, o concerto do trio Rabih Abou-Khalil & Joachim Kühn pedia um outro espaço que permitisse uma maior concentração, um espaço mais introspectivo e sossegado. Assim, muito do público começou a tornar-se impertinente e às tantas o ruído de fundo tornou-se demasiado elevado para uma experiência musical satisfatória.

A kora é um instrumento africano de 21 cordas, com uma sonoridade semelhante à da harpa, que permite conciliar ao mesmo tempo o ritmo e a improvisação. Quem o explicou foi Toumani Diabaté, o Deus da Kora (segundo as palavras do grande Ali Farka Touré), durante uma pausa do concerto da sua Symmetric Orchestra, o qual se assemelhou a uma partida de futebol.

Diabaté assume o papel de maestro daquela selecção dos melhores músicos do Império Mandinga, permanecendo discretamente no centro do palco enquanto distribui jogo para o resto dos colegas, que por vezes arriscam a jogada individual. Noutras vezes, é o próprio Toumani Diabaté que arrisca a jogada individual e é aí que a kora ganha a predominância sobre o resto da orquestra.

O concerto, no entanto, começou morno, com muitas perdas de bola (leia-se falhas). E o tal interregno que falei no início fez-lhes bem, talvez para recuperar forças. É que os automatismos começaram a surgir e, sem ser uma exibição de encher o olho, Toumani Diabaté e a sua Symmetric Orchestra conseguiram conquistar o público de tal maneira que este até lhe perdoou o fado final, acompanhado por uma fadista algo deslocada.

E se Kusturica descobrisse o heavy metal? Certamente, não seriam os Alamaailman Vasarat, mas antes um tema dos Alamaailman Vasarat. É que a banda finlandesa vai muito mais além do que qualquer rótulo que se possa usar.

O universo musical dos Alamaailman Vasarat é um enorme caldeirão onde confluem a influência do heavy metal nórdico, a música de dança dos balcãs, o rock progressivo e o jazz bebop. Por vezes soam a um Dizzy Gillespie versão dark, por outras a Emir Kusturica perdido no heavy metal. Uma coisa é certa: foram o concerto do festival mais difícil de transcrever para o papel por palavras.

DIA 28

Se Nuru Kane tivesse nascido nos Estados Unidos da América e tivesse uma guitarra eléctrica em vez do guimbri, seria certamente o líder de uma banda rock. È que Nuru Kane tem todos os maneirismos de um rockstar, maneja o guimbri como quem maneja a guitarra eléctrica e tem o ritmo e a urgência das bandas rock anglo-saxónicas.

No entanto, Nuru Kane nasceu no Senegal e aprendeu a tocar o guimbri, uma espécie de baixo de três cordas. Por isso, o que se ouve no palco da Avenida da Praia é uma mistura explosiva entre o gnawa, o blues do deserto e o afrobeat nigeriano. Fosse a actuação horas mais tarde, no Castelo, e teria sido acompanhado por um público mais receptivo a um passo de dança. Assim, foi apenas um concerto competente e agradável.

A iraquiana Farida e o Iraqi Maqam Ensemble foi a última confirmação do FMM, substituindo o africano Thomas Mapfumo à última hora. No entanto, pensar que esta foi apenas uma opção de recurso é um tremendo erro.

Farida é o espelho do seu Iraque: um país com um passado cultural riquíssimo, mas envolvido em ditaduras e arreliadores conflitos armados nas últimas décadas. Farida é uma das mais impressionantes vozes femininas da actualidade e deu um dos concertos mais tocantes do festival.

O trio norte-americano The Bad Plus foram os senhores que se seguiram. Descomplexados e descontraídos, divertem-se a deitar abaixo as barreiras do jazz, desconstruindo em improvisações avant-garde versões de bandas como os Nirvana ou os Aphex Twin. Em Sines, ficaram-se pela versão de «Narc», dos Interpol.

Mas os The Bad Plus são mesmo para levar a sério. Para quem duvida, basta ouvir a forma como recriaram com o mesmo engenho uma das músicas mais fabulosas do génio Ornette Coleman, «Song X», e uma das mais detestáveis canções da música instrumental, o tema de «Chariots Of Fire». E finalmente os Vangelis fizeram sentido…

Há quem diga que é Deus no céu e Trilok Gurtu na terra. É exagero, mas o que é certo é que o indiano é o melhor percussionista de sempre e quem não concordar é porque nunca o ouviu tocar.

Para Sines, Trilok Gurtu fez-se acompanhar dos Misra Brohters, vocalistas da música clássica indiana. No entanto, não se pense que este foi um regresso de Trilok Gurtu às suas raízes. Fazendo-se acompanhar por um bombo, uma tarola, um prato de choques e um arsenal de instrumentos de precursão, Gurtu foi a ponte entre aquele colectivo tradicional indiano e o público anglo-saxónico que o escutava atentamente.

Foi uma experiência transcendental e valeu ainda por sabermos estar a presenciar um momento histórico.

A noite traria ainda outra lenda viva aos palcos de Sines. A Avenida da Praia esperava por Tony Allen, o lendário baterista nigeriano que foi um dos co-criadores do afrobeat, ao lado de Fela Kuti.

No entanto, notou-se pelo concerto de Allen que o afrobeat ganha outra projecção quando é complementado por um vocalista em palco, que possa canalizar toda aquela energia para o público. É que Tony Allen não conseguiu ser mais do que uma hora de descompressão, desfilando pela cartilha funk com uma competência acima da média, indo de Stevie Wonder a Barry White com a mesma desenvoltura de quem aproveitava para se sentar na praia a relaxar.

DIA 29

O FMM tem uma aura especial – são as chamadas boas vibrações, não só do certame, mas da própria cidade – e ao terceiro dia, começa logo a apertar pela manhã, a angústia de ser o último.

Talvez tenha sido por isso que o concerto de Mariem Hassan foi tão comovente e marcante. Fala-se cada vez mais do blues do deserto. Talvez esteja na altura de se começar a falar do fado do deserto…

As Värttinä têm algo de girlgroup dos anos 50, que se projecta na escola das popstars da actualidade. É neste universo musical que as três jovens finlandesas cantam a tradição popular finlandesa, de fadas, bruxas e florestas encantadas.

Misturando a folk escandinava com a pop anglo-saxónica, as Värttinä criam um Mundo alternativo sobre o palco, onde tanto se assemelham a virgens cândidas que cantam sobre meninas abandonadas, como a bruxas malvadas que cantam sobre fantasmas do submundo. Se em disco soam a banda do Festival da Eurovisão, em palco fazem um pouco mais de sentido.

Os Cordel de Fogo Encantado vêm do Sertão brasileiro, aquela zona do interior ainda muito ligada à terra e à realidade rural e onde se fala aquele português com um sotaque muito estranho. Este último pormenor é capaz de vos fazer desenvolver uma espécie de rejeição automática perante os Corde De Fogo Encantado impossível de ultrapassar.

Com uma secção de precursão de impor respeito, os Cordel De Fogo Encantado ganharam automaticamente o título de banda mais poderosa do festival: três percussionistas, apenas um guitarrista e um vocalista muito peculiar.

È sobre este último que versa todo este parágrafo: Lira de seu nome, é uma espécie de fusão entre a capacidade poética de Jim Morrison e a decadência romântica de Pete Doherty (sim, é mesmo um elogio), que disfarça a pouca amplitude da sua voz com uma personalidade e uma presença em palco louca.

O concerto dos Cordel de Fogo Encantado faz-se em muito dessa vertente poética, das letras musicadas de poetas pernambucanos (a declamação de «Ai Se Sêsse», de Zé da Luz, foi o momento mais bonito de todo o FMM) e da capacidade xamânica da banda. Aliás, o truque está aí: não subestimar os poderes xamânicos dos Cordel de Fogo Encantado; eles são como aquela mulher sertaneja que saltou dum prédio altíssimo – se queria voar é porque tinha asas; e se eles querem mudar o tempo, é porque podem, querem e devem.

Os Cordel de Fogo Encantado dividiram as opiniões do público. Mas uma coisa é certa: não deixou ninguém indiferente. E isso não pode ser mau.

Por fim, Seun Kuti, uma das grandes expectativas do cartaz. Bejamim da família Kuti, Seun herdou o legado do pai, não só o afrobeat, mas a sua própria banda, os Egypt 80.

Depois do concerto memorável do irmão Femi há dois anos atrás, Seun Kuti vinha também encerrar o festival. No entanto, logo de início, uma certa descoordenação com o majestoso fogo-de-artifício revelou que algo poderia correr menos bem.

Seun Kuti deambula mais pela vertente soul-funk do afrobeat criado pelo seu pai, Fela Kuti. Contudo, muitas vezes o seu concerto envereda por vias de sentido único, que nem os dezoito membros dos Egypt 80 conseguem retirar da indiferença (o órgão de Kunle Justice, por exemplo, pouco mais faz do que corpo presente).

Talvez o fardo seja demasiado pesado e talvez ainda esteja demasiado presente nas nossas memórias o concerto memorável de Femi Kuti, no FMM de 2004. A seu favor, Seun Kuti apenas tem o facto de dançar melhor que o seu irmão. O que é certo é que Seun Kuti e os Egyp 80 foram a maior desilusão do festival. É a chatice de trazer demasiadas expectativas na bagagem. E nem a presença de Tony Allen nas últimas três canções fez grande diferença.

Haveria ainda para escutar Ivo Papasov e a sua música para casamentos, no palco da Avenida da Praia. No entanto, apesar de uma bateria omnipresente e algumas deambulações jazzísticas inesperadas, Ivo Papasov apenas veio provar que a música balcânica é neste momento pouco mais do que uma moda caída nos mesmos lugares comuns, um pouco à semelhança do que acontece com o reggae.

Para o ano há mais.



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