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Poderemos viver sem mentir?

“Cenas da vida conjugal”, com Ivo Canelas e Katrin Kaasa, dirigidos por Rita Calçada Bastos, espectáculo que veio substituir “Tierra de Sud”, pandemia dixit, é um objecto teatral surpreendente, poderoso, envolvente, que traz uma nova abordagem ao caldeirão temático deste festival: a verdade e a mentira nas relações no casamento.

Primeiro em formato televisivo, depois em versão cinematográfica, Cenas da vida Conjugal de Ingmar Bergman, é um daqueles filmes indispensáveis na filmografia do grande mestre sueco. O texto já fora apresentado pelo menos uma vez, no TNDMII ( em 2012), numa encenação da realizadora Solveig Nordfund, e que contava com três actores ( Adriano Luz, Margarida Marinho e Paula Moura), numa versão ainda mais condensada da original, suprimindo o casal amigo de Marianne e Johan.

Este tipo de operações dramatúrgicas surge recorrentemente na adaptação para teatro e também não é estranho que a versão traduzida pela actriz Katrin Kaasa (que lançou o desafio à encenadora Rita Calçada Bastos) ainda tenha suprimido mais uma personagem, a da jornalista que entrevista o casal. Mas o que é mais feliz nesta supressão, é que ela permite intensificar este emaranhado emocional que se entretece na vida deste casal, e de trazer isso para um plano fechado sobre a sua intimidade.  Na versão original, ao celebrarem dez anos de casamento, Marianne e Johan são entrevistados para uma revista feminina. Depois, fazem um jantar com amigos onde falam da reportagem e a conversa começa a estragar-se com acusações e insultos mútuos. Nesta versão tudo isto desaparece e apenas fica uma mesa de jantar, com os restos do que terá sido um jantar. Em cena só está Johan (Ivo Canelas), depois  junta-se Marianne (Katrin Kaasa), os dois falam da separação eminente do casal de amigos. 

Esta economia narrativa é notável e produz desde logo um efeito na relação entre os dois. O espaço está dividido por uma linha branca, e dum lado, o lado esquerdo, tem o quarto, uma cama e um charriot com cabides de roupa, as dele e dela, e no direito tem a mesa. Há uma porta para a casa de banho que não se vê em cena, surge em filme. Um filme de João Canijo e Leonor Teles que para além de se tornar um elemento cenográfico importante, estabelece também um diálogo entre o teatro e o cinema, o que não podia ser mais feliz tendo em conta a obra em causa.

Há assim um conjunto de clarividências, tanto no plano da dramaturgia como na da construção do objecto teatral, que fazem com que a representação possa soltar-se, ganhar uma essencialidade que nos fascina. Os actores, que têm uma larga experiência em teatro e cinema, conseguem fazer uma síntese entre os tempos ( e a colocação de voz) de cinema e de teatro, adequam-se como uma luva à complexidade psicológica destes personagens de Bergman, seres que andam ali num vaivém entre umas trevas existenciais e uma vontade interior que os ilumina, e que é, simultaneamente a sua libertação e a sua tragédia.

É fascinante a forma como os dois actores crescem na cena e como esse crescimento tem a ver com o próprio desenvolvimento das suas personagens. Marianne e Johan, uma advogada e um professor,  são, ou melhor, parecem ser, duas pessoas bem sucedidas, com uma vida bem arrumada, duas filhas, relações parentais tranquilas. Ora tanto Ivo Canelas como Katrin começam a representação, dividida por quadros (apresentados como títulos, no ecrã, que curiosamente evocam, ou podem remeter-nos para Brecht) com tempos de resposta muito rápidos, correctos, uma representação límpida, mas muito rápidos para aquilo que poderíamos imaginar de personagens bergmanianos. E isso acontece tanto no primeiro quadro como no segundo.

No terceiro tudo muda. E o arranque é dado pelo personagem de Ivo Canelas. Chega a casa e percebemos que ele tem algo para contar. E confessa que tem uma relação extraconjugal com Paula e que partirá para Paris no dia seguinte. É absolutamente espantosa a forma como neste momento Ivo Canelas nos dá aquele personagem à beira do abismo, de um abismo para o qual se sente atraído e tem como inevitável. Quase que conseguimos sentir os solavancos do seu pensamento em sopetão.  Marianne começa também a ter aqui um vislumbre da personagem em que se irá tornar, mas ainda é uma amálgama de dor e sofrimento, ela própria sente a humilhação a que se autoinflige quando suplica pelo amor do marido.

O próximo quadro é um salto no tempo, um regresso de Johan, que seis meses depois surge meio destruído pelo seu voo de Ícaro. Já odeia Paula quase tanto como odiou a mulher, e assume que ela o engana e que não se importa com isso.  É uma daquelas cenas típicas de casais separados, com tentativas de reatamento, de invocação de jogos sexuais já conhecidos e que têm na generalidade de se confrontar com a sua impossibilidade, como escreveu magistralmente Jorge de Sena no seu poema “Noutros lugares”: “ É que os lugares acabam./ Ou ainda antes de serem destruídos, as pessoas somem e não mais voltam onde parecia que elas ou outras voltariam para sempre e por toda a eternidade.

O quinto e último quadro (na verdade é o penúltimo mas o sexto funciona apenas como epílogo) é o mais rico e o que permite uma expansão da personagem Marianne, numa interpretação de Katrin Kasa que já não nos surpreende porque a esta altura já estamos completamente envolvidos com a acção, rendidos ao talento dos dois actores. Tanto ela como Johan estão no ponto mais alto do seu percurso. Marianne já se emancipou da sua dor, já se reconfigurou emocionalmente, Johan tem momentos de uma lucidez terrível, é certo no meio também de uma grande exaltação conduzida pelo álcool, mas o seu pensamento está iluminado por uma clareza que é, se atentarmos que o texto tem cerca de cinquenta anos, um sinal da profundidade do olhar de Bergman.

Com o título Analfabetos, neste quadro Johan dá-nos conta da forma como negligenciamos a aprendizagem emocional e afectiva nas relações que estabelecemos. E traz-nos um cinismo muito cortante de Johan, quando Marianne lhe diz que encontrou alguém que ama e com quem se pode libertar do amor que viveu com Johan, este responda-lhe com ironia, dando-lhe conta de que será só até arranjar outro a quem irá contar a mesma coisa.

É aqui que os personagens de Bergman adquirem uma riqueza fabulosa: eles perdem quando ganham e ganham quando perdem, porque aquilo que verdadeiramente os constitui é serem um lugar de passagem pelo sofrimento, pela exaltação, pela alegria. O Johan destruído pela sua busca, é afinal um ser iluminado pela lucidez, pelo seu cinismo, pela sua coragem em assumir até o seu sentimento de desprezo pelas filhas. E que assim se liberta da tragédia, enquanto Marianne, porque também se sente mais forte, vai, no seu zapping, sorridente a caminho da sua próxima infelicidade.

Nesse sentido, o último quadro, sendo uma condensação muito sintética do original, sem contextualizar nada, dá-nos o casal num sofá, depois de terem feito amor. Os dois já estão noutras relações. Infelizes, pois. E, nessa altura percebem – quando Marianne acorda a meio de um sonho e conta-lhe que o traiu algumas vezes quando estava casada e que só deixou de o fazer porque a traição começou a cansá-la – ou apercebem-se, que a mentira, o jogo de esconde-esconde, é afinal indissociável da experiência humana. 

Texto; Ingmar Bergman ( tradução de Katrin Kaasa) | Encenação: Rita Calçada Bastos | Interpretação: Katrin Kaasa e Ivo Canelas | Video João Canijo e Leonor Teles | Cenário e Figurinos: Fernando Alvarez (Ricardo Reis, assistente) | Desenho de Luz: Paulo Santos | Música e Espaço Sonoro: Hugo Neves dos Reis | Produção Executiva: Raul Ribeiro Co-Produção: Close2Paradise e São Luiz Teatro Municipal



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