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Foge Foge Bandido @ CCB

O Bandido Fugiu.

Acabou, e não poderia ter acabado de melhor forma. Foi no seu auge que o projecto Foge Foge Bandido viu o seu fim, perante um grande auditório do CCB praticamente cheio no passado dia 25 de Junho, e uma banda em palco melhor que nunca, que embarca nesta pequena digressão de despedida em coordenação perfeita. O primeiro projecto a solo de Manel Cruz, verdadeiro herói do rock nacional (o mais honesto de todos, provavelmente) que nos trouxe com este seu novo trabalho uma obra tão única quanto pessoal, actuou pela última vez em Lisboa num concerto de duas horas da mais pura excelência, percorrendo de forma sempre eficiente e minuciosa aquele registo duplo que já se assume como séria obra de culto.

Num público transgeracional, que ia desde os 16 aos 61, Manel Cruz e os seus quatro músicos mostraram-se em coordenação virtualmente perfeita, interpretando sem falhas canções francamente complexas e, muitas vezes, aparentemente impossíveis de reproduzir em palco segundo as suas versões em disco. Ao vivo, tudo ganha uma nova alma, um novo impacto, com cada canção (e até mesmo a ordem do alinhamento) a ter exactamente o efeito desejado. Logo ao início, com a calma e íntima «Foi no Teu Amor», se criou uma aura de união entre banda e público (ao meu lado, um grande amigo cantava todas as letras; atrás de mim, um casal mais velho ficou silencioso do início ao fim; estávamos todos ali para o mesmo, e é raro ver um público tão respeitoso como o que se viu no CCB), que anunciava aquilo que o resto do concerto viria a confirmar: esta seria uma noite especial. Perante um palco cheio de instrumentos, os vários brinquedos usados, e holofotes de luz que desenhavam efeitos que iam ajudando ao cenário, Cruz e os seus músicos mostraram-se à vontade, trocando uma ou outra piada entre si, perguntando ao público se este queria água durante uma das curtas pausas entre canções, e chamando até a certa altura ao palco três roadies para ajudar à festa.

Foi um concerto de ritmo incessante e feroz, onde as pausas foram poucas e breves, com mais de trinta canções em menos de duas horas, todas elas tocadas na perfeição e recebidas com uma chuva de aplausos. Se «Diz-me Se Aprovas» serviu para criar um momento calmo e sensível, «Tirem o Macaco da Prisão», por exemplo, desenhou um ambiente de pura energia e euforia, numa das canções que ao vivo mais se transforma em algo verdadeiramente apoteótico. As letras, essas, soam sempre pessoais, frequentemente comoventes (veja-se «Ninguém é Quem Queria Ser», por exemplo, um dos melhores momentos da noite), e o espectador nunca deixa de sentir a impressão de estar a ver em palco uma alma desconhecida que consegue, misteriosamente, dizer tanto sobre a sua. Os temas são tão universais quanto íntimos, e as letras complexas e impressionantes aliam-se sempre a melodias às quais assentam os mesmos adjectivos.

Canções como a «Canção da Canção Triste», uma das que o público reconheceu logo aos primeiros acordes, mostram bem isso: arranjos fabulosos aliados a sentimentos em estado cru. Aquele solo de guitarra eléctrica, aqueles apitos que soam a trombones perto do final, e aquele Manel Cruz sem camisola (como sempre) a abanar-se enquanto canta, projectam no espectador visões e sentimentos que acabam por ficar muito após o fim do longo e tão consistente concerto. Momento mais memorável? Talvez «Borboleta», a canção que apresentou o projecto ao mundo, tocada de forma completamente diferente da do disco (e de forma completamente diferente de outros concertos da digressão), com distorção de guitarra, uma bateria vertiginosa, e um vocalista em aparente epifania; quando Manel Cruz grita no final “Tu pensas que não/Mas tu és mesmo bom/ A ser sempre quem és”, as palavras falham a descrever todo o simbolismo e todo o poder sonoro sentido na pele. Foi a canção que terminou o corpo principal do concerto, e deu ao grupo a inevitável e tão merecida ovação de pé.

Os três grandes encores que se seguiriam, com escolhas exemplares, serviriam para cimentar o concerto como um a ficar na memória por muito, muito tempo. «Mau Hálito», tocada sem microfones ou instrumentos, com todo o quinteto à beira do palco, foi um momento magnífico e cantado a uma voz, e «Sempre a Pensar», em versão mais simples e emotiva que em disco, foi um momento fabuloso. E quanto mais perto do fim se estava, mais se sentia tanto na banda como no público o triste facto de que este seria, infelizmente, o último concerto do projecto na capital. «Quem Sabe» pôs um ponto final à noite, num dos mais emotivos momentos do concerto, com a banda a despedir-se com um sorriso que encheu toda a sala que estava em pé, visivelmente arrebatada com o que tinha visto. “Até à próxima, pessoal!”, gritou Manel, antes de sair do palco, lançando assim ao público as mesmas palavras que usou no fim do concerto de despedida dos incontornáveis Ornatos Violeta. Para eles, não houve próxima vez; para o Bandido, e conhecendo-se Cruz como se conhece, também não haverá certamente.

Noite memorável, que ficará na memória dos presentes pelos seus momentos tristes, os seus momentos alegres, e os seus momentos apoteóticos (aquela versão da «Borboleta»…), vividos ao longo de duas horas espantosamente coerentes e sempre na excelência pura. Terminou da melhor forma, como raros projectos terminam: com a banda no seu auge. Manel Cruz mostrou-se mais à vontade que nunca (ainda se lembram quando ele tocava sentado…?), os músicos estiveram em coordenação perfeita, e foi transmitido ao público um sentimento que hoje em dia raramente se sente em concerto: o de este ter sido uma noite tão especial para os músicos quanto para quem os ouvia. Foge Foge Bandido terá agora mais alguns concertos pelo Norte do país, e depois não voltaremos a ter o privilégio e a sorte de os ver ao vivo. Daqui a décadas, provavelmente haverá quem fale desta noite como a grande despedida que foi, feita não com tristeza, mas antes com alegria. Noites assim são (muito) raras, e o mesmo se pode dizer sobre todo o projecto em si. Foi um privilégio. O Bandido fugiu, mas levou consigo tanto quanto nos deixou.



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