Fruitvale Station – A Última Paragem

Fruitvale Station – A Última Paragem

Um valente murro no estômago

Caso não estejamos devidamente informados sobre a história do filme (que era o meu caso, já que quando parto em busca de um novo paladar me recuso a embarcar em provas de degustação) os primeiros minutos do filme podem deixar-nos confusos. Estes mostram-nos uma série de imagens capturadas via telemóvel que relatam um incidente o que marcou o quotidiano da estação de metro de Fruitvale Station em 2009. Um acontecimento que se pinta com mesclas de uma cinza acastanhada, mistura de sangue, preto e branco.

Uma vez feita referência a este universo real que podia bem ter acontecido em qualquer lugar do mundo hoje mesmo, em 2014, embarcamos na história de Oscar Grant, protagonizado por Michael B. Jordan. Ele é um jovem algo complexo e que saiu recentemente da prisão na qual esteve por, aparentemente, ter traficado droga no passado. Este passado é-nos contado através de apontamentos em flashback e é aqui que o filme começa a ganhar traços de uma excepcionalidade incrível. Através de uma estrutura narrativa solta e de fácil digestão, vai-nos sendo relatada a dicotomia entre o presente de um bom ser humano que inevitavelmente vai mergulhando nas memórias de um passado que flutua por entre falhas e erros irreversíveis e que nos levam também a nós a embarcar nesta flutuação entre duas realidades aparentemente distintas. Estas realidades são, no entanto, apenas uma e estes flashbacks acabam por funcionar como buracos no tempo, elementos que contemplam a nossa capacidade de errar mas que não é por isso que nos devem confundir face aos traços de personalidade da personagem íntegra com a qual começamos (inevitavelmente) a simpatizar.

 

Fruitvale Station - A Última Paragem

 

Esta empatia advém da luta diária deste protagonista por começar de novo, (re)vencer o amor da namorada, aproveitar o tempo lado a lado da filha e receber o abraço da mãe que outrora lhe foi negado. Mas Ryan Coogler filma isto sem nenhuma aspiração à pia da santidade, longe disso. Oscar é-nos apresentado apenas como um homem comum mas ao qual será concedido o direito de, através de detalhes do seu dia-a-dia, nos mostrar que provavelmente é um ser humano ligeiramente melhor que muitos outros (nós próprios?) por ainda salvaguardar aquilo que muitos já esqueceram: valores. E este filme fala-nos, sobretudo, sobre isso: valores. Através do relato de pequenos episódios do quotidiano – como são exemplo o encontro casual com uma desconhecida no supermercado à qual o protagonista não nega pronta ajuda, ou a atitude digna que este tem quando testemunha o atropelamento de um cão – esta história vai levantando a bandeira dos valores humanos e começa a roçar na nossa consciência como sendo afinal uma inteligente e pesada crónica sobre as cores reais com que se pintam o mundo e a nossa sociedade.

 

Fruitvale Station - A Última Paragem

Sobre as cores convém não deixar escapar um detalhe sobre o protagonista: ele é preto. E não, o filme não faz qualquer menção a isto. Oscar vive segundo um espírito de continuidade dos valores da comunidade negra, é certo, mas esta questão cultural não nos é relatada de uma forma tingida pelos traços mais evidentes do cinema que explora esta realidade, nem tão pouco a família de Oscar se assemelha à típica família do gueto desfavorecido. O que nos é contada é, antes, uma genuína vontade de fazer perdurar determinados valores relacionados com a raça e este aspecto descritivo ganha traços indescritivelmente belos num momento em que o protagonista coloca a avó ao telefone com uma desconhecida branca, num contexto de supermercado, para que perdure o sopro da entreajuda e a partilha de conhecimento da mais anciã.

 

Fruitvale Station - A Última Paragem

 

O único momento em que de facto a tensão racial é colocada a descoberto, e nos faz brotar do peito um profundo desconforto, é a derradeira situação final, na estação de metro de Fruitvale Station. Devido à inteligência e leveza com que se constrói todo o argumento, esta cena não surge como que fora do baralho nem vem de forma alguma quebrar a fluidez da narrativa. Pelo contrário: o facto de este filme ser dotado de um intocável realismo social e de se construir com base em elementos descomplicados, espontâneos e genuínos do dia-a-dia fez com que ao longo de toda a história se tenha erguido aos poucos e de uma forma muito subtil a bandeira dos direitos humanos que de certa forma nos foi preparando para este desfecho mais… indigesto.

No final do filme apercebemo-nos de que nada até então foi dispensável e que nem mesmo um abraço o deveria ter sido. Este filme funciona como um espelho que nos devolve a imagem dos nossos próprios valores que nos interpelam sem dó nem piedade e que nos dão um valente murro no estômago. Agora, convém é sairmos da sala de cinema e fazermos alguma coisa sobre isto.

 



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