Gente Sentada vs Gente em Pé

Santa Maria da Feira foi palco de dois festivais dentro de um só. No final, como ficamos? Sentados ou em pé?

Era Uma Vez… Gente Sentada e Outras Histórias

A harmónica omnipresente e os óculos charmosos de um Nicolai Dunger ao longe envelhecido, ao perto sorridente. As viagens, os desenhos a lápis de cor, a calma e a paz de espírito penetrantes de Sufjan Stevens e sua guitarra. As histórias mirabolantes, as aulas de ballet ao som de Lauryn Hill, as diversas vidas de Rosie Thomas. As afinações em directo, as aulas de português e a alegria de tocar de Kate Walsh. A presença, a segurança, a descontracção, o peso americano e a mão amiga de Robert Fisher. A alucinação, o delírio, a dança das cadeiras, os cabelos desgrenhados, a volta à América em oitenta minutos, o vinho do Porto de Devendra Banhart e companhia. As histórias de todos eles.

Longe da dinâmica fria e mecânica que, salvo raríssimas excepções, habitualmente marca o andamento dos grandes festivais em Portugal, o Festival para Gente Sentada funcionou como uma espécie de segunda casa para todos os que se deslocaram até Santa Maria da Feira nos dias 1 e 2 de Outubro. Artistas e anónimos. Até mais do que a simplicidade desarmante da música que desfilou pelo palco do Teatro António Lamoso, saltou à vista a humildade, o profissionalismo e o amor à camisola que partilham todos os músicos que fizeram deste fim-de-semana uma belíssima estreia para um festival inteiramente dedicado ao songwriting, e que acabou por funcionar como uma concretização das pistas lançadas no palco Songwriters do saudoso Paredes de Coura 2004. Há público, há música para mostrar, há músicos para tocar, há espaços para aproveitar.

Dois cenários nocturnos. Um exterior, campestre. Outro caseiro, de sala de estar. Não interessa situar quem actuou onde e quando porque, feitas as contas no final e vistas bem as coisas num todo, a totalidade dos músicos intervenientes na tertúlia sentada partilharam o mesmo quarto, perdão, o mesmo palco, e circularam pelos espectáculos alheios. A familiaridade sentia-se à distância, o ambiente intimista estendia-se muito para além dos cenários e dos jogos de luzes pensados ao pormenor. Os chamados artistas assistiram aos concertos uns dos outros, participaram nos concertos uns dos outros, contaram histórias, muitas histórias, à lareira e partilharam experiências de vida com o público.

Por entre toda esta humildade desarmante houve música. Outra vez a harmónica de Nicolai Dunger. Os sonhos à guitarra de Sufjan Stevens. A nostalgia ao piano de Rosie Thomas, que no final da noite tentava comprar um disco de Kate Walsh ao balcão. A “bagagem” e o humor sábio de Robert “Willard Grant Conspiracy” Fisher, que a meio do concerto deu carta branca ao público para conversar, dado que o espectáculo não estava a decorrer numa biblioteca, e aproveitou também para enviar os devidos agradecimentos ao DJ de serviço da noite anterior [Miguel Quintão] que incluiu no set o tema “Soft Hand” dos Willard Grant Conspiracy. A encerrar em grande a maratona de concertos, Devendra Banhart fez jus ao hype que à sua volta foi criado ao longo dos últimos meses, e que foi responsável pela deslocação da maioria dos presentes em Santa Maria da Feira, e deu um espectáculo poderoso do princípio ao fim com a respectiva banda. Um resumo da história da música americana, roots, rock, reggae, houve espaço para tudo, menos para todos quantos gostariam de ter estado sentados durante o espectáculo. Há males que vêm por bem. No final, se uma cadeira incomodava muita gente, várias cadeiras incomodavam muito mais. Havia gente em pé. Finalmente.

A Dança das Cadeiras

O desafio não era fácil – encerrar de pé um festival – supostamente – para gente sentada. Álvaro Costa e Miguel Quintão foram os anfitriões do after-hours construído à volta do mote Música Para Gente em Pé. Uma ideia caída do céu para o obrigatório esticar de pernas que se impõe depois de um evento deste tipo, que informalmente será visto como um conjunto de concertos “bem comportados”, que obriga o público a manter uma postura séria e especialmente contida no decorrer dos acontecimentos.

Uma vez transpostas as portas do Teatro António Lamoso e feita a entrada no átrio a conversa é outra. Álvaro Costa no comando das operações, mantendo-se fiel ao conceito de intercâmbio levado a cabo pelos próprios músicos que fizeram o festival para gente sentada, partilha o “palco secundário” e a maquinaria ao dispor com Miguel Quintão, DJ de serviço recrutado para a noite seguinte. Sons novos em tubo de ensaio à volta do rock, hip hop, electro, eclético numa palavra – assim se resume uma noite que teve tudo para ser grande… menos público. Pouco depois de terminado o concerto de Rosie Thomas, a debandada – passe a informalidade, porque não há palavra que expresse da mesma forma a atitude do público – foi unânime. Sobraram dez pessoas, se tanto.

No dia seguinte, o caso mudou de figura. Com mais gente no recinto, era à partida mais fácil conservar o público no final dos concertos. Para além do que, os restos da animação da actuação de Devendra Banhart ainda se faziam sentir no corpo, acumulados, porque apesar da quase incontrolável vontade de balançar  as cadeiras estavam lá e o mote do festival acabou por ser levado à letra. Gente sentada. Até à hora da desforra. Aí houve Gente em Pé até de madrugada, a fazer lembrar as incansáveis sessões de rock n’ roll dos Zig Zag Warriors que Miguel Quintão leva à prática com Zé Pedro noutras encarnações.

Sem Zé Pedro, mas com o apoio moral – e não só – de Álvaro Costa, Miguel Quintão manteve a pista improvisada ao rubro até perto das seis da manhã. Ora com mais ou menos quebras, com mais ou menos gente, o DJ de serviço soube como jogar com o cansaço – cada vez mais visível – dos resistentes, lançando para a pista o tipo de sons que fã de música e sobretudo de rock n’ roll que se preze não recusa – Franz Ferdinand, The Killers, The Libertines, Joe Strummer, Radio 4, Elefant, Interpol, Josh Rouse, Morrissey, The Veils, Joy Division… mais? Só visto. Às cinco da manhã ninguém diria que tudo havia começado como um clube de gente sentada. Era obrigatório dançar mais uma, porque ainda não era hora do descanso do guerreiro.



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