Girls Aloud
Autênticas devoradoras de mundos no meio de uma ousadia temerária perfeitamente intelectualizável
Apesar de ser muito provável que não reconheçam este nome, as Girls Aloud são um grupo britânico com já dez anos de idade e constituem a maior girlsband de sempre do Reino Unido, com mais de vinte êxitos nos lugares cimeiros das tabelas de singles. Esta breve introdução tem todo o potencial para suscitar escárnio e na realidade estas cinco raparigas, agora a chegar aos 30, reuniam todas as qualidades para a evolução de um autêntico desastre, nomeadamente na sua génese: foram as eleitas de um concurso/reality-show de talento vocal. Tal facto seria o suficiente para se tornarem, no limite, numas rapidamente extinguíveis one-hit wonders. No entanto “aconteceram” Brian Higgins e Miranda Cooper que formam, entre outros, um colectivo de hitmakers conhecido como Xenomania e, terminado o malfadado programa, resgataram-nas logo no single de estreia e desde aí nunca mais as abandonaram. “Sound of the Underground” foi, sem surpresas, um sucesso estrondoso. No entanto, havia algo de imediatamente desconcertante e hipnotizante nesta contagiante miscelânea de surf rock com trip hop dos anos 90 e que seria apenas o primeiro de uma série de hinos de transfiguração pop.
Se hoje em dia a música pop é instaneamente olhada de soslaio e sinónimo de frugalidade é porque o mainstream se deixou contaminar por uma total falta de imaginação, resumindo-se na generalidade a um desprezível fenómeno de incessante reciclagem. E é exactamente aqui que as Girls Aloud começaram por se distanciar da concorrência. Há uma total anarquia na forma como constroem as canções, totalmente desprovidas da típica e identificável fórmula base da canção pop, em vigor há décadas e, por medo ou fraqueza, intocável e seguida com rigor matemático. No entanto, o grupo desde cedo que se impôs nesta área e tal tornou-se indubitavelmente no seu maior trunfo. Não são poucas as vezes que as canções começam com um refrão, seguem por outro e só depois são introduzidos os versos. As bridges podem estar em todo o lado mas com pouca frequência no sítio devido. As regras não existem na estruturação da música e o exemplo mais flagrante disso é «Biology», um desnorteio de refrões infecciosos, centrais num arranjo totalmente esquizofrénico e que parece ter sido concebido sob a influência de um qualquer estupefaciente alucinatório.
E é apenas um exemplo entre generosas dezenas de outros delírios que povoam os já cinco álbuns de originais – os dois últimos, “Tangled Up” e “Out of Control”, são das maiores pérolas que o género ofereceu na passada década – e duas colectâneas lançados desde 2002. E se a capacidade de disrupção da canção pop se tornou na assinatura a fulcral da banda, a produção dos Xenomania é igualmente transversal, viajando pelas big-bands e R&B da Motown dos anos 60, funk dos anos 70, dance dos anos 80, techno e dance dos anos 90 e incorporando todos estas influências de forma quase imperceptível e não longe do brilhantismo. E se Nicola, Cheryl, Kimberley, Nadine e Sarah são as frentes de perfeitas e uníssonas harmonias vocais, as guitarras que normalmente evisceram todos os temas são igualmente essenciais. É rara a canção que não se deixa permear por dilacerantes riffs de guitarra eléctrica que simultaneamente rasgam e conduzem a melodia ao próximo patamar.
Igualmente digno de profícua adjectivação são os também emblemáticos e venerados conjuntos de rimas perfeitamente absurdos e sem qualquer tentativa de significância narrativa. O nexo de frases como “let’s go eskimo out in to the blue” e “I need a squeeze a day instead of this negligée” da totalmente demente «Love Machine» – que já foi fruto de uma brilhante versão dos Arctic Monkeys – ou “something kinda ooooh, jumping on my toot-toot” da eléctrica «Something Kinda Ooooh» são apenas breves exemplos de letras edificadas para incutir a melodia de uma irresistível e críptica musicalidade de palavras tão deliberadamente convocadas. Inúmeros dos seus refrões são infindáveis jorros de repetições e onamatopeias, milimetricamente desenhadas para impiedosamente lacerar os que nelas procuravam algo substancial.
Nos passados três anos, os elementos do grupo dispersaram-se por diversos projectos a solo com variados graus de sucesso: Cheryl Cole transformou-se na coqueluche da pop urbana britânica, Nadine Coyle falhou redondamente num disco de originais totalmente desprovido de personalidade, Kimberley Walsh e Sarah Harding renderam-se à televisão e escolheram 2013 para também revelarem os seus álbuns de estreia. A mais notória de todas é no entanto Nicola Roberts, a ruiva enganadoramente tímida, que em 2011 colocou a crítica aos seus pés com o seu rugir destemido em “Cinderella’s Eyes”, uma deliciosa maravilha electropop por ela conjurada e herdeira de nomes como Robyn e Roísín Murphy. É agora ela que toma as rédeas do som da banda em canções como «Something New» e «On the Metro», originais da compilação “Ten”.
Voltam a juntar-se no final de 2012 para celebrar esta década de música, transladada para uma digressão exaustiva pelo Reino Unido que culminou no passado fim-de-semana na O2 de Londres. Foi lá que se deu a maior prova da longevidade e alcance da banda, com fãs de todos os cantos dos mundo – Espanha, Itália, China, E.U.A, Brasil, entre outros – a exemplificarem o estatuto de culto que gozam fora da Ilha-Mãe. O facto de nunca se terem dado a promover fora de terras de Sua Majestade torna-as ainda mais intangíveis e talvez o sentido de humor britânico, cáustico e sôfrego, seja fundamental para compreender este fenómeno. Com os rumores a apontarem para a dissolução logo após o final da digressão, o lamento será geral para aqueles que aprenderam a não viver sem esta pop pérfida. O legado, esse, estará sempre presente para ser descoberto com iguais doses de assombro e incredulidade. Porque no meio de toda esta ousadia temerária perfeitamente intelectualizável, as Girls Aloud são autênticas devoradoras de mundos.
Fotografia de Nuno Miguel Gonçalves
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