Grouper|”Grid of Points”

Grouper|”Grid of Points”

Seguir a linguagem de Grouper ao longo dos tempos é uma tarefa orgânica, tão orgânica como a vida, excepto que aqui o orgânico desta vida em particular é extraterrestre, extra terreno, quase como se Liz Harris, a artista que está por trás do alter ego Grouper, não fosse humana e se estivesse a ambientar aos seus tempos na terra.

Este solilóquio não é uma crítica, antes mais um imenso sentimento que, inexplicavelmente, irrompe sem aviso quando ouvimos os vários trabalhos da performer norte-americana, nascida na terrena Califórnia e actualmente sedeada no Oregon. Esta informação é pública na internet mas fica a sensação que é mesmo só porque era preciso haver uma morada física para dar corpo à intemporalidade daquilo que se passa na cabeça de Liz ao dar forma à sua música.

Artista muito prolífica tanto na música como na arte, é aparentemente tão críptica numa como noutra, expressando-se através de infindáveis labirintos visuais e imagens auditivas que são quase mantras, repetindo os mesmos tons ao piano durante os minutos que duram as faixas dos álbuns. Grouper também canta mas nem sempre usa palavras ou raramente as usas, pelo menos palavras que nós humanos consigamos perceber, afinal estamos só a falar num dos possíveis canais de comunicação. O que é certo é que a música de Grouper é como uma sereia, começa-se a ouvir sem protecção alguma e ao primeiro toque não aparenta grande genialidade mas de repente estamos a ouvir o último álbum em loop, que não é difícil porque as suas curtas e geniais 7 faixas passam a voar. De facto, há qualquer coisa entre as linhas da música que transcendem a realidade tal como a conhecemos ou talvez estejamos só demasiado envoltos em barulho e excesso de informação para conseguirmos atingir o patamar de Grouper, que é, afinal, tão simples quanto a própria existência. A cantora precisa urgentemente de acompanhar a sua música, o que causa alguma estranheza, dado que na maioria da sua produção não usa palavras reais, o que leva muitas vezes a que seja comparada, nesse aspecto, a Cocteau Twins, que tinham, como se deverão recordar, uma linguagem própria que não tinha de fazer sentido para que nos conseguíssemos relacionar com ela.

Aquilo que cada um de nós sente na música de Grouper é pessoal e intransmissível porque tal como nos seus outros trabalhos também em “Grid of Points” se estabelece uma relação pessoal de isolamento e transcendência do que está à vista. É quase como se se tratasse de um pedaço de terapia individual em forma de música, que, aliás, é o que parece representar para Liz Harris, que em muitos momentos apenas segue as linhas do piano com a voz, umas vezes como um mantra, outras como se se tratasse de um tema para crianças. Por isso, cada visão sobre “Grid of Points” ou os anteriores trabalhos é diferente, cada ouvinte que escreve descreverá imagens diferentes e em momentos diferentes e esse é um dos pontos mais fascinantes deste álbum, que volta a ser novamente mais criptíco que o anterior, “Ruins”, gravado em Aljezur no âmbito de uma residência artística da Galeria Zé dos Bois. Quando se retrocede na carreira de Liz Harris, que toma o seu nome a partir do facto de ter crescido numa restrita comunidade mas que tem um sentido pejorativo quando criado pelos miúdos para se chamarem uns aos outros, “Ruins” parece ter sido dos mais luminosos álbuns de Grouper.

“Grid of Points” é um fatídico curto LP que vai pouco além dos 20 minutos de música, muito devido ao facto de Liz Harris ter ficado doente durante a gravação. Sobre o estado febril que a acometeu naquele intenso e também curto período em que decorreu a construção do álbum quase arriscaríamos tratar-se de uma reacção física ao modo como a artista se relaciona com a sua música mas neste caso muito antes ainda de ter dado por terminado o processo. Se cada álbum de Harris parece representar uma pequena morte simbólica, esse processo foi interrompido em “Grid of Points” prematuramente e isso foi visto como um sinal de que o trabalho havia, afinal, terminado. Assim, não foram acrescentadas mais faixas às 7 que já existiam e o mais estranho é que a intensidade deste novo álbum é tão grande que dentro dele cabem dezenas de outros álbuns e horas de música. De um ponto de vista pessoal, não foi uma sonoridade que captasse imediatamente os sentidos mas aconteceu mais como uma revelação súbita e de repente aquelas palavras de que é muito difícil perceber o sentido (a cantora não divulgou sequer as letras deste álbum) estavam a falar uma língua perceptível em qualquer parte do mundo emocional. Grouper é um estado de espírito, o alter ego de alguém que faz a sua terapia continuamente através da música e que em “Grid of Points” soa mais a introspecção religiosa, como se entrássemos na igreja privada de alguém que precisa estar a sós consigo mas juntamente com toda a gente. Piano e voz, confesso, mesmo não sabendo que não havia letra, que nem fui procurar o significado das mesmas, não é preciso, esta é a música que funciona como espelho, olhamo-nos nela e vemo-nos numa atmosfera que despe verdadeiramente a realidade de tudo o que é acessório. Em “Grid of Points”, Liz Harris tem um isco que é essa simplicidade desarmante, tão íntima, uma voz tão humana que soa a extra terreno, é na terra mas resplandece no céu e é precisamente neste curto trabalho que tocamos a alma. A voz de Harris é um instrumento de liturgia que se expurga de tudo aquilo que não precisa, arrepiante, podia não cantar mas fá-lo para criar um continuum com a música, uma fusão impressionante e ao mesmo tempo mais clara que nunca, definida, cristalina.

“Grid of Points” atinge-nos o âmago sem darmos por isso e simultaneamente soa ao passo mais importante de Liz Harris na aprendizagem que faz aqui na terra, entre nós simples mundanos. É como se tivesse andado todos estes anos a tentar falar connosco porque é disso que se trata, é outro plano de existência a que não estamos habituados. Liz está tão próxima de nós aqui e traz uma luz tão intensa que cega, não conseguimos ver uma luz tão branca, tão forte, sem nos assustarmos. “Grid of Points” é isso mesmo, assusta, é assombroso, um genial exercício de música etérea, sussurrada ao ouvido até nos destruir irremediavelmente as barreiras terrenas. Se parecer uma continuação do que Liz fez em “Ruins” não é estranho mas se parecer qualquer coisa de completamente diferente também não é estranho, essas contradições são assimiláveis. Se tiverem vontade de se perderem sem remédio neste universo maravilhoso, têm de ouvir como se tivessem nascido agora novamente e preparar-se para experimentar inúmeras metamorfoses, começos, fins, mudanças, suspensão de todas as crenças. “Grid of Points” é uma fascinante nova vida.



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