Hedda no São Luiz
Um clássico contemporâneo encenado por Jorge Silva Melo, em cena até dia 17 de Outubro.
“Hedda” é a história de Hedda Gabler, de Hedda Tesman, uma história possível de mulheres com grandes capacidades condicionadas a limitações culturais de uma outra época. Ibsen retrata esses humores e destinos femininos bem como em particular, os amores, desejos, e segredos de Hedda, uma mulher moderna, burguesa, forte, peculiar e experiente, uma referência social na sua cidade, uma mulher desejada, mas carente e solitária, incompreendida, sonhadora que domina a arte do sonho, da sedução e da manipulação com requinte e subtileza. É a filha do general e herdou dele as suas armas pessoais, o seu ADN. Tem marido, amante e pretendente que lê os seus pensamentos mas nada a satisfaz e sofre por querer sempre mais e melhor.
Casa – porque no seu tempo assim tinha de ser -, mas não ama o seu marido Jorgen, que, à semelhança do seu anterior amante Eilert, tem um coração mole e uma escrita fluida e valiosa que ama o seu ego e a sua tinta mais do que tudo na vida. Hedda esforça-se por acreditar no amor e no seu futuro com Tesman, um escritor que ama os seus livros e o dos outros, mas no fim quem vence é a arte e o ego do artista.
A mensagem deste espectáculo reside aqui, ensina-nos que o importante é viver e não escrever, ou então, escrever só depois de se viver. A vida pode e deve transformar-se em arte e a arte é que serve da vida, o contrário não é de todo saudável e feliz! Assim como o amor pela vida e pelo outro, deve ser o grande vencedor em detrimento do ego e do amor pela arte e pela obra, para que o destino de cada um não termine assim como esta tragédia, só assim se fazendo justiça à memória desta grande personagem dramática da história do teatro, Hedda.
112 anos depois
A 22 de Abril de 1898 estreou nesta sala em Portugal esta peça de Henrik Ibsen, “Hedda Gabler”, encenada por Eleonora Duse. Desta vez, 112 anos depois, é agora pelo olhar de Jorge Silva Melo que esta peça regressa, numa versão contemporânea. Confessou-nos o encenador – que é 50 anos mais novo que esta peça – que só teve coragem de a encenar depois de José Maria Vieira Mendes – que, por sua vez, é 80 anos mais novo – ter aceite o desafio de a reescrever e depois de Maria João Luís, que na altura desse convite representava neste palco “Stabat Mater”, ter aceite o desafio de interpretar a Hedda, com a devida aprovação de Jorge Salavisa. E assim foi.
Neste texto de José Maria Vieira Mendes, que teve três versões importantes e uma quarta versão apenas de pormenor, notam-se, segundo o próprio autor e Jorge Silva Melo, diferenças da versão original de Ibsen: entre elas, inevitavelmente a actualidade das falas das personagens, o facto de não existirem entradas e saídas anunciadas e marcadas, e o mais importante, todas as personagens desfilam em cena como se pertencessem ao mundo imaginário criado e manipulado por Hedda. Além disto, o marido Tesman já não é um “pateta no casamento”, o casamento já não é visto apenas como um contrato movido por interesses económicos (como naquele tempo), Hedda e Thea já não são colegas e têm uma diferença de idades que funciona como um espelho entre elas, Helliot aparece aqui mais excêntrico, mais solitário e descontente com a sua vida, entre outros detalhes.
A peça começa com a chegada a casa de um casal recém-casado, depois de uma viagem de lua de mel de seis meses num comboio. Mas, no fundo, a peça ainda se passa nessa viagem de comboio, ou na cabeça de Hedda nessa viagem, ou, metaforicamente, é uma outra viagem de comboio, a viagem de uma vida. Muitas vezes chama-se a atenção do espectador para esta realidade ao ouvir-se expressões como “isto é só uma estação, uma paragem!”, “e o comboio segue o seu caminho”, entre algumas das falas das suas personagens Hedda e Brack.
José Maria Vieira Mendes considera-se um “escritor-leitor”, tal como um estudante que lê um texto e recria os pensamentos do que estuda, dando a cor natural desses pensamentos nos dias de hoje. Decide manter a estrutura narrativa intacta mas coloca todas as personagens ao serviço da cabeça de Hedda, elas são os seus pensamentos criativos e vivos que habitam a sua cabeça e a sua sala, onde entram e saem essas pessoas na sua vida.
O passado surge representado por Thea, a melhor aluna do seu marido, agora amante de um escritor, tal como ela já foi, ou melhor, a miúda ingénua e amante do seu ex-amante Eilert, como ela própria também já foi no seu passado.
E o futuro, representado por Brack, um juiz carente e atrevido, com uma vida solitária e triste. Existe uma enorme e evidente cumplicidade com o Juiz Brack, que lê os seus pensamentos em voz alta, é seu compincha e na verdade, adoraria ser seu amante. São os únicos adultos desta peça que concordam invariavelmente na forma de olhar o mundo e de viver a vida. E isso faz todo o sentido, visto que ele representa Hedda no futuro.
Hedda é isto, uma mulher, numa sala, onde as personagens entram e saem da sua sala/vida/cabeça, “uma mulher a rejeitar esta realidade e a caminhar pausadamente e decididamente para o suicídio. Esta Hedda é uma espécie de leitora da sua própria vida, a olhar para os seus últimos dias.”, explica o autor José Maria Vieira Mendes.
Hedda herdou o génio e as duas pistolas do seu pai, General Gabler, e tal como ele, é capaz de disparar pelos seus sonhos e filosofia de vida. “Agir, levar as ideias até ao fim”, diz ela, ser fundamentalista, é isto, verdade? Essas pistolas são instrumentos cruciais de todo o enredo e materializam os segredos de Hedda: é por causa delas que Thea e o juiz Brack descobrem, em momentos distintos, quem foi a autora de episódios importantes que se passam nas suas vidas, respectivamente, quem era a mulher do passado de Eilert, o amor da vida de Thea e quem era a mentora de um suicídio/homicídio de autoria moral provocado na comarca do juiz Brack.
No desenrolar do enredo, o autor do texto, fazendo jus ao popular ditado português “pela boca morre o peixe”, brinca com expressões verbais de Hedda – “Que disparate! Isso só se diz, não se faz!” -, e coloca essas mesmas expressões na boca de Brack, que as repete e ironiza, brincando agora com Hedda, depois de esta lhe dizer que prefere morrer a ceder à sua chantagem.
Mas a verdade é que se pode também fazer o que só se deve dizer… ela é capaz de o fazer porque Hedda, “se quiser”, é “capaz de acelerar o tempo”. “Hedda escreve sem letras, sobe escadas sem degraus, Hedda até no tempo manda, a Hedda é de quem ela quiser”, diz o juiz Brack, seu fã e cúmplice, que sabe de antemão que um dia mais tarde, ela terá de concordar com ele.
O seu passado passou-o apaixonadamente com Erliet Lovborg e com os seus sonhos e escrita. Caricaturando, resume-se precisamente à realidade apaixonada e literária de Thea no refúgio das montanhas com Erliet mas sem a carga negativa de trair o seu marido com essa paixão.
É por isto que Hedda se identifica tanto com Thea e a incita a não perder o seu tempo e a reabilitar-se, a não repetir o seu erro, a reabilitar o seu passado. Mas Thea não compreende a sua mensagem e assusta-se.
Hedda ainda tenta explicar melhor esse erro, dizendo-lhe que mesmo que esta pense que ajudou Eilert a escrever o que quer que seja, que o transformou, lhe indicou o caminho ou mostrou-lhe a luz, está redondamente enganada porque aquele homem ela já o conhece bem demais… não se interessa pelo mundo nem pelas pessoas, só vive para si e para a sua escrita sobre o mundo.
Aquele homem é a razão da sua amargura e descrença no amor.
Casou com outro escritor na esperança de, desta vez, o seu ego de artista não olhar apenas para o umbigo da sua escrita que deixa tudo o resto invisível ao olhar e coração.
Ela valoriza a escolha, não das palavras mas da acção, a Vida e a coragem de ser e de viver, tudo aquilo que Eilert se esqueceu de ser e fazer. Isso vê-se facilmente, por exemplo, quando ele ao perder o seu manuscrito, nem isso consegue assumir, preferindo dizer ao mundo que o rasgou.
Na verdade, quem o queimou foi Hedda, por vontade própria e segura, por raiva ou por ódio pelo seu erro do passado ou por estratégia desesperada (in)consciente da reconquista de um espaço no coração/vida do seu marido, que, à semelhança do seu anterior amor, Eilert, só vê a escrita como forma monogâmica de vida e de amar.
Hedda repudia essa falsa realidade que Eilert lhe tenta anunciar e mais uma vez, confirma e despreza essa sua estranha forma de vida e de amor por si e pela vida. Mais uma vez, “tu não escolheste, tu não agiste….Vais passar a vida a recuperar”, diz-lhe. Dá-lhe uma pistola do seu pai e incita-o a fazer algo de belo na sua vida, a agir, pelo menos uma vez na vida!
Relembra-o ainda que aquela pistola já tinha sido a si apontada.
Morre Eilert mas de belo a sua morte nada teve. Não foi nem voluntário, nem suicídio, não morre com uma coroa de folhas de videira na cabeça. Pelo contrário, foi um acidente num sítio feio, levou um tiro no estômago por infortúnio.
Morreu o passado de Hedda e assim, abre-se a porta para o seu futuro, o juiz Brack que sabe bem quem é a proprietária da arma desse crime, resolve fazer disso chantagem. Ele aborrece-a de morte e chantageia-a, prometendo-lhe agora uma vida a três, cheia de ”diversão, surpresas e uma dose de risco” em troca do seu silêncio. Hedda prefere morrer.
Ao mesmo tempo, o seu marido Tessman e Thea, em memória do falecido e célebre escritor, decidem reinventar o manuscrito queimado por Hedda, provando assim que todo o gesto heróico de Hedda de nada valeu. A história repete-se, agora com o seu próprio marido. Torna-se tudo insuportável.
Hedda perdeu…. a esperança, a crença, a razão e a vontade de viver.
Tessman e Thea repetem o padrão, que começou com Hedda e Lovborg e depois, com Lovborg e Thea… o padrão que Hedda teimou queimar mas afinal sem qualquer êxito.
Para Thea tal é ainda incompreensível e odioso evitar. Thea, por isso, pergunta-lhe: “Queres voltar atrás? Tomara outras decisões, voltar atrás, é por isso? Queres estar no meu lugar? Queres sair daqui? Queres ir passear? Andar de comboio? Não queres estar casada? Não queres gostar? Não gostas? O que é que queres? Queres ser como eu? Queres ser o contrário de mim? Não sabes o que queres? Tens inveja? Tens medo de ir para a frente? Queres ser o quê? Queres parar? Queres disparar? Queres ir para longe? Estar longe das pessoas? Sair desta casa? Queres o quê? Hedda.”
Hedda não sabe o que quer, não consegue ser nada, ela sabe que não sabe, quer ser tudo e não é nada e tudo a aborrece.
“Porque é que não gostas de mim, Thea?” é a sua última pergunta. “Escolhe as tuas palavras e o teu caminho. Aprende comigo. Vê-me a fazer. Talvez um dia sejas capaz. De escrever as tuas próprias palavras”, explica e ensina Hedda.
Hedda, uma mulher que procura beleza na sua vida, e que está disposta a matar e a morrer por isso, só acredita que vale a pena viver se a arte de Vida for mais valiosa que a vida da Arte.
Toca os primeiros compassos da Valse Oublié nº 1 de Liszt (pelos dedos da pianista Inês Mesquita) e deixa de acreditar no mundo e no seu futuro, faz o impossível!…
A não perder
Eis a última encenação de Jorge Silva Melo, que mais uma vez, nos brinda com a sua habitual fluência e leveza de encenação, inspirada pela experiência cinematográfica de Bergman com “Lágrimas e Suspiros”, um espectáculo também bastante cinematográfico, com uma enorme preocupação e atenção na interpretação dos actores e nos pormenores da contracena da protagonista, interpretada pela fabulosa actriz de génio e de excelência na arte da representação, escolhida a dedo e por encomenda, Maria João Luís, que interpreta uma personagem muito interessante, extremamente fascinante e difícil no trato e na representação, que consegue falar sem palavras, nas entrelinhas das suas frases.
Marco Delgado representa Eilert Lovborg, com intensidade e entrega, António Pedro Cerdeira interpreta Tesman, um actor que tem a leveza lírica que pede a sua personagem, Lia Gama representa a Tia Juliana, uma escolha “viciada” mas justificada de Jorge Silva Melo, Cândido Ferreira interpreta extremosamente o Juiz Brack. Rita Brütt, aqui Thea, a aluna preferida do Tesman, revela ainda demasiada fragilidade no desempenho e credibilidade da sua personagem.
A cenografia e figurinos são de Rita Lopes Alves, que nos brinda com um palco aberto, uma casa grande (de paredes azuis cobertas de frescos representando motivos vegetais e animais), num sofá de veludo vermelho, o habitat ideal e quente para quem não sente o calor da vida e do amor. Lá ao fundo, troca-se o recheio de um escritório por um piano.
O desenho de luz é de Pedro Domingos, onde saltam imagens mais marcadas e iluminadas com a chegada da notícia da morte pela Tia Juliana e da morte da Hedda, com uma luz de trás para a frente com porta em contraluz.
Parabéns a todos, um espectáculo a não perder!
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